Tudo começou em 1976, aos 12 anos, com uma coleção de livrinhos de teatro com capa vermelha da Abril Cultural, uma assinatura que ela tinha pedido ao pai. Dois por mês. Depois disso, os livros nunca mais pararam de vir, aos borbotões.
Não há registro de uma só pessoa que tenha entrado na casa de Lucia Boldrini sem se impressionar com sua enorme biblioteca. Amigos, parentes, namorados, eletricistas, veterinários (que cuidavam de sua outra coleção, a de gatos) vasculhavam embasbacados as estantes que iam do chão ao teto.
Não raro alguém questionava se ela já tinha lido tudo aquilo. Com um sorriso zombeteiro, costumava dizer que só havia uma resposta possível para essa pergunta, roubada do escritor Umberto Eco: “Não li nenhum, do contrário, por que os teria aqui?”. E gargalhava.
É impossível escrever um texto à altura de Lucia, principalmente porque ela não está aqui para editá-lo. Com as palavras, era implacável e perfeccionista.
Como lembra o amigo Reinaldo Azevedo, que conheceu na adolescência e com quem trabalhou na revista Primeira Leitura, “nunca, para ela, havia algo bom o bastante”. “Era preciso intervir às vezes: ‘Já deu; temos de fechar.’ Ela ficava angustiada até a revista chegar. Então via a excelência, em letra impressa, do que ela própria havia produzido e, enfim, sorria de alívio. Até o dia seguinte.”
Lucia entrou no jornalismo por acaso. Em 1984, conseguiu uma vaga de recepcionista na Folha enquanto fazia faculdade de história na USP. Levava grossos livros de filosofia para passar o tempo até que, um dia, foi convidada para fazer um teste como redatora na editoria de política. Passou os 40 anos seguintes em Redações e salas de imprensa.
O esmero com os textos marcou até a memória do vice-presidente Geraldo Alckmin, com quem trabalhou na Secretaria de Comunicação do Governo de São Paulo. “Como me relataram amigos, ela era capaz de cobrir, com a mesma desenvoltura, o Campeonato Brasileiro de futebol e os últimos acontecimentos do mercado financeiro”, diz ele em mensagem à família nesta terça-feira (14).
Não era fácil ser Lucia. As questões terrenas a exasperavam. Comer, por exemplo, não lhe dava prazer —via como uma distração, uma mundanidade que arrancava o tempo de fazer o que realmente importava: ler, pensar, escrever. “Lucia nunca conseguiu, como num poema de Mário Faustino que ambos adorávamos, ‘firmar o nobre pacto/ entre o cosmos sangrento e a alma pura’”, resume Reinaldo.
A vida dela não cabe em um só texto. Morou em Santo André, São Paulo, Brasília e Londres. Casou-se duas vezes. Dos namorados, perdeu as contas.
Resgatou dezenas de gatinhos abandonados —nos últimos anos, dava preferência aos mais estropiados, de que ninguém queria cuidar. Foi redatora, editora, atriz, bilheteira de cinema, camareira de hotel. Costurou sozinha 30 fantasias de Harry Potter para o aniversário de oito anos da filha.
Ofereceu, durante mais de meia década, a melhor festa da Virada Cultural de São Paulo. Madrugada adentro, seu apartamento no bairro da República virava refúgio de amigos, conhecidos e também desconhecidos. Era sua festa de Natal, dizia a ateia convicta, que acendia velas para santos quando os amigos repórteres participavam de coberturas perigosas.
Lucia também não cabia no pequeno quarto hospitalar onde se viu confinada desde março de 2024, após um acidente vascular cerebral grave, e sabia disso. Morreu na sexta-feira (10), aos 61 anos. Deixa dois irmãos, dois sobrinhos, uma filha, um neto e 4.000 livros.