Moradores de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, bairros do Rio de Janeiro localizados entre lagoas e oceano, estão acostumados com a presença de jacarés-de-papo-amarelo em ambientes urbanos.
Eles já foram vistos em edifícios, hospitais, clubes e até na passarela de uma avenida. São tão comuns quanto os peixes, diz uma moradora.
Os dois bairros cresceram a partir da década de 1970, quando grandes condomínios foram erguidos, estendendo a construção à beira dos terrenos pantanosos, característica original do solo daquela parte da cidade.
O biólogo Ricardo Freitas Filho, 45, criou em 2009 o Instituto Jacaré, que hoje mapeia os animais da região. Ele é chamado por síndicos e administradores quando algum jacaré é encontrado em ambiente não natural.
Isso tem acontecido cada vez, em razão da expansão imobiliária, segundo ele. “Os jacarés são os moradores nativos da área, que cresceu rápido, nem sempre sob controle”, diz.
A região administrativa de Jacarepaguá tinha 612.621 habitantes em 2022, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No Censo de 1991, eram 389.302.
A região administrativa da Barra da Tijuca tinha 462.423 moradores em 2022; em 1991, eram 98.791.
Deste crescimento, boa parte dos prédios é licenciada pela prefeitura, mas também entram no cálculo as construções irregulares, algumas patrocinadas pela milícia, segundo investigações policiais.
Milicianos e traficantes disputam comunidades que cresceram ao redor dessas lagoas e canais. Em 2021, um morador da Gardênia Azul gravou em vídeo o momento em que um jacaré arrastava o corpo de um homem pelo rio.
Em fevereiro deste ano, a Seop (Secretaria Municipal de Ordem Pública) demoliu um galpão comercial de 330 metros quadrados construído ao lado de um refúgio de vida silvestre em Vargem Pequena, na zona oeste.
A região, segundo a Seop, sofre influência do crime organizado. A secretaria afirmou que a construção não tinha licença, mas não confirmou se o autor da construção tinha envolvimento com o crime.
A avaliação de Freitas Filho é de que a expansão da cidade em direção aos pântanos da zona oeste causou um desequilíbrio na população animal.
“Na minha tese de doutorado mostrei ter capturado 213 machos (78%) e 65 fêmeas (21%), além de 90 jacarés juvenis, que não dá para identificar o sexo. A taxa de crescimento dos jacarés teve valor negativo, o que reforça a hipótese de que a população está diminuindo”, diz o biólogo.
“A discrepância entre machos e fêmeas pode ter relação com o aumento dos poluentes. Esse sedimentos elevam a temperatura da água, e o aumento da temperatura afeta a determinação sexual dos embriões.”
A água a partir de 31,5°C eleva a probabilidade de produção de machos dentro dos ovos. Já águas mais frias dão mais possibilidade de nascimento às fêmeas.
Jacarés regulam a temperatura corporal através dos raios solares, por isso é comum encontrá-los à margem de um rio, ou mesmo em calçadas, “pegando sol”.
A concessionária Iguá, responsável desde 2021 pela distribuição de água nos bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, assinou um contrato que determina o uso de R$ 250 milhões para melhorias no complexo lagunar de Jacarepaguá.
O contrato prevê a dragagem da lagoa ao longo de três anos. No primeiro ano já concluído, 282 toneladas de sedimentos foram retirados, diz a empresa. A Iguá também planeja a instalação de coletores de tempo seco para interceptar o esgoto nas tubulações, evitando o despejo in natura nas lagoas.
A construtora Carvalho Hosken foi o símbolo da expansão da Barra da Tijuca, a partir dos anos 1970, com o conceito dos bairros planejados —grandes condomínios com associação de moradores própria.
Península e Ilha Pura (vendido em 2024 ao BTG Pactual), dois dos empreendimentos mais famosos, ficam próximos às lagoas. Durante as obras, alguns especialistas diziam que o Ilha Pura estava perto de uma área de nidificação (formação de ninhos) de jacarés.
Em nota, a Carvalho Hosken afirma que, durante o processo de licenciamento, estudos “não identificaram áreas de nidificação ou locais específicos de reprodução de fauna dentro da área do empreendimento”.
“A implantação do Ilha Pura respeitou integralmente as faixas marginais de proteção da lagoa, mantendo áreas preservadas e corredores ecológicos.”
A Carvalho Hosken afirma ainda que as associações de moradores dos bairros planejados têm um protocolo de convivência responsável. A orientação é acionar os órgãos ambientais. Ainda conforme a construtora, os avistamentos são esporádicos.
Freitas Filho e dois auxiliares fazem trabalhos noturnos na lagoa de Jacarepaguá. Encontram sofás, garrafas, fios e sacolas. Às vezes, acham caçadores também: grupos em pequenos barcos que capturam jacarés para comer. A água, esverdeada, é de difícil navegação.
Na noite em que a reportagem acompanhou o trabalho, o Instituto Jacaré capturou para análise três animais, todos machos. O maior tinha cerca de 1,5 metro. Para atrai-los, o grupo emite um som gutural, como um engasgo, semelhante ao som dos jacarés.
A atuação dos biólogos consiste em capturar os répteis para medição e análise. Os animais são amarrados com fita na boca e nas patas, para evitar acidentes. Uma vez imobilizados, são medidos, pesados e identificados como macho ou fêmea.
“É preciso tomar cuidado com o giro da morte”, brinca o estudante de biologia Thaylan Salles, que atua no Instituto. Esse movimento, explica o auxiliar Phillippi Dutra, é a tentativa do jacaré de se desprender da corda de captura, mexendo a cauda.
Os biólogos também tiram um pedaço de dois ou três centímetros da pele dos animais para análise laboratorial. Lá, conseguem saber, segundo Freitas Filho, a idade e a influência dos materiais poluentes no seu crescimento. A mesma análise é feita com jacarés resgatados em ambientes urbanos.
O Instituto Jacaré é chamado por donos de empreendimentos, mas a atribuição de resgate é do Corpo de Bombeiros. De 1° de janeiro a 11 de março, 79 jacarés foram salvos por bombeiros em todo o estado.