John Ioannidis (Universidade Stanford) pede por uma reforma na ciência da nutrição. Sua crítica se assenta na implausibilidade de resultados da área. Algo provavelmente já notado pelo auspicioso leitor. É realmente duro acreditar que ingerir uma mexerica por dia possa prolongar nossa vida por meia década; ou que consumir um ovo matinal tenha o efeito oposto.
Conclusões esquisitas como essas vêm de estudos observacionais, que não conseguem capturar toda a complexidade que envolve a alimentação humana, basicamente por três razões:
- Não consumimos alimentos isolados, mas em milhares de combinações diferentes (e não se espera que um x-egg tenha o mesmo valor nutricional que uma salada com ovo)
- Nossos hábitos alimentares são fortemente influenciados por fatores que costumam passar por debaixo do radar, como renda, educação, cultura, estilo de vida etc (consumidores de castanhas vivem mais graças às desejáveis propriedades funcionais desse alimento, ou por que são mais endinheirados e têm melhor acesso a serviços de saúde?)
- Nossas ferramentas de avaliação do consumo alimentar dependem do relato das pessoas, que pode não ser fiel à realidade (alguns subestimam a quantidade do que comem, enquanto outros simplesmente não se lembram o que comeram ontem)
Esses entraves metodológicos tornam a investigação da alimentação das populações problemática. Mas os milhares de resultados anualmente produzidos pela área continuam a ser considerados em recomendações nutricionais e, frequentemente, divulgados pela mídia como fatos incontroversos.
O exame crítico das evidências é necessário para restabelecer o real papel da alimentação na prevenção de doenças. É o que fez Ioannidis, em colaboração com Jonathan Schoenfeld, neste interessante estudo que conto aqui.
Os cientistas selecionaram 50 ingredientes comuns de receitas aleatórias, obtidas num livro de culinária, e avaliaram sua relação com o risco de câncer.
Foram encontrados artigos associando o consumo de 40 desses ingredientes (80%) ao câncer. De 264 estudos, 191 (72%) concluíram que o alimento testado estava associado a um aumento (n = 103) ou a uma diminuição (n = 88) do risco. Porém, 75% dessas alegações foram baseadas em evidências fracas (efeitos pequenos ou nulos, análises estatísticas imprecisas, definições confusas sobre o que seria um consumo alto ou baixo de determinado alimento etc).
De fato, os autores observaram que as meta-análises —revisões sistemáticas que analisam conjuntamente artigos individuais, minimizando seus vises a partir de critérios robustos— chegaram a resultados muito mais conservadores; apenas 13 delas (26%) relataram aumento (n = 4) ou diminuição (n = 9) do risco. Isso favorece a tese de que muitos estudos trazem achados exagerados e desorientadores.
Outro dado de destaque no estudo é que, para os 20 ingredientes mais investigados pela ciência, 17 apresentaram evidências ambíguas. O leite, por exemplo, pode aumentar seu risco de câncer em mais de 400%. Ou quem sabe reduzi-lo em 70%. Escolha sua evidência e cruze os dedos.
O estudo da alimentação populacional é obviamente valoroso. Mas, como sugere Ioannidis, é preciso que a área trabalhe para aprimorar seu rigor metodológico (melhor controle de variáveis de confusão, priorização de estudos longitudinais, avaliação de padrões alimentares em vez de alimentos específicos etc), sob pena de enfrentar o descrédito.
Ao caro leitor interessado nas novidades do mundo da nutrição, vale a máxima: desconfie de tudo que é muito bom para ser verdadeiro. E também do que é muito ruim.
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