Nada fica para trás na Antártida. Até uma única luva levada em uma lufada provoca uma correria. A preocupação também vale para que as pessoas não percam a cabeça, com o cansaço já batendo após tanto tempo de trabalho e expedição dentro de uma embarcação.
Venisse Schossler, 48, geógrafa, climatologista e pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), está em sua segunda expedição à Antártida, a bordo do navio que leva os pesquisadores no que pode se tornar a maior circum-navegação nesse continente gelado.
Na primeira, há poucos anos e após cerca de uma década de estudo da Antártida, ela enfrentou o gelo sobre um trator, em uma expedição de 12 horas para levar o projeto Criosfera 2 —coleta de dados climáticos— ao seu ponto de instalação. Alcançado o local, mais 30 dias acampados garantiram a instalação do maquinário.
Mas um acampamento espaçoso, com barraca-cozinha, barraca-banheiro etc. Totalmente diferente da pequena barraca-dormitório-banheiro onde ela celebrou o Natal recente junto a outras sete pessoas, em um espaço onde só caberiam quatro.
Se no aperto os homens presentes usavam uma garrafa, ela não pôde fazer o mesmo. Teve que enfrentar a tempestade e, pela situação extrema, deixou algo para trás.
No Diário da Antártida desta semana, Schossler conta como leva consigo o orgulho de ser a única mulher na coordenação da expedição, assim como também é a única mulher do grupo que pesquisa testemunhos de gelo e da mesma forma era a única presente na instalação do Criosfera 2.
Não podemos deixar absolutamente nada. Tu não deixas nada na Antártida, a não ser pegadas.
Para coletar o testemunho [de gelo], botamos uma luva plástica bem fininha por cima da luva que esquenta a mão. Eu não lembro quem foi, mas bateu um vento e a luva voou. Essa criatura correu tanto para pegar essa luva. Com aquelas botas enormes, que afundavam. Mas ele conseguiu pegar. Não deixamos a luva lá.
É uma convenção. Tu entraste na Antártida, se tu deixas alguma coisa lá, é muito irresponsabilidade. Principalmente coisas plásticas, papel, essas coisas. Tu não podes deixar nada, nada, nada. Não tem ninguém vigiando, mas todo cientista que vai, vai consciente. Pela nossa equipe, posso falar com tranquilidade. Não estamos em nenhum momento pensando em prejudicar aquele ambiente intocado e perfeito que é a Antártida.
Quanto mais intocado, melhor para nós, na questão de resultado, que trabalhamos lá. Para o ambiente então nem se fala.
Por exemplo, trabalhamos com microplástico [a partir do estudo de testemunhos de gelo]. Como é que vamos deixar uma luva de plástico que voou se estamos estudando justamente contaminação por microplástico? Então, quando o gurizinho saiu correndo, fiquei morrendo de pena, mas eu disse: vai, corre.
Fiz parte da equipe que instalou o módulo Criosfera 2. A gente foi começo de dezembro de 2022 e voltou no fim de janeiro de 2023. Era uma equipe de quatro pessoas. Uma experiência incrível. A gente levou o Criosfera 2 de trator. Doze horas de trator. O nosso módulo científico é um contêiner, tipo esses de food truck. Foi uma operação logística extremamente difícil.
[Na expedição atual] A gente passa praticamente todo o tempo no oceano. Isso é uma coisa que eu nunca tinha feito. Para mim, está sendo uma experiência incrível. É cansativo e ficamos muitos dias aqui dentro esperando chegar ao ponto para fazer o trabalho de campo. Mas, em compensação, também é uma experiência de observação da natureza. Conseguimos ver baleia, foca, pinguim, todos os tipos de pássaros antárticos. Tu estas na janela da cabine, passa um iceberg pequenininho e um monte de pinguim em cima. É muito legal.
Em compensação, lá onde a gente foi [na expedição do Criosfera 2] não tem nada. No interior da Antártida é gelo, gelo e gelo. Não tem uma espécie de animal. Mas, no Skytrain, onde colocamos o módulo, tínhamos vista para as montanhas Ellsworth e posso dizer da beleza monumental delas, que são as maiores da Antártida. É um negócio que não tem explicação. Trinta dias acordando, abrindo a barraca e olhando para aquilo.
E cientificamente é completamente diferente [as duas expedições]. A outra era totalmente técnica; monta equipamento, testa. Lá foram 30 dias consecutivos de trabalho, trabalhando das 8h da manhã às 10h da noite —que não é noite, é dia. Aqui é um negócio braçal e rápido. Vai para o campo trabalha e terminou.
Lá, tínhamos barraca-cozinha, barraca-banheiro, barraca-dormitório. O banheiro não é a coisa mais maravilhosa do mundo. E tem as curiosidades. A gente recolhe tudo. Tu não podes misturar a urina com fezes. Tem de fazer o xixi no lugar, segurar e ir no outro fazer o número dois. Porque, quando tu vais retirar depois, fica muito mais difícil se tu misturas os dois. A urina fica toda dentro de uns galões, separada do outro, que fica em um saco de lixo supermega resistente. A gente não deixa nada.
Completamente diferente do acampamento que fizemos [no Natal] que era de improviso. Nem pensávamos que iríamos usar.
Eu era a única mulher. Os meninos podiam urinar ali dentro dos recipientes que levamos para isso, só que eu não tinha como fazer isso, até porque não tinha nem espaço. Então, fui a única que tinha que sair da barraca.
No meio da tempestade, começaram a se formar umas dunas ao lado da barraca e um buraco onde não cai neve. Pensei: ‘vou ali porque ali está protegido’. Levei um tombo. É alto, tu não enxergas nada. Caí um metro para baixo. Por sorte, caí de jeito. Podia até ter quebrado o pé. E, assim, tu pensas na situação de a pessoa ter que baixar toda a roupa. Tem que rir na desgraça, para a gente ficar bem lá mentalmente precisava.
Em um ambiente extremamente hostil, se tu não estás muito bem psicologicamente, não é legal, inclusive para quem está junto. Já ouvi histórias bem sérias de expedições passadas, de a pessoa ter que ser retirada, surtada. Aqui não presenciamos casos extremos, mas, sim, de pessoas que estão entrando em um, vamos dizer assim, burnout, estresse de cansaço.
O cansaço e o tempo começam a pegar para algumas pessoas. Aconteceu com uma pessoa aqui, mas ela já está bem. Ela foi para o campo, voltou muito cansada, o estresse físico muito grande assustou, né? Talvez psicologicamente isso tenha tido um impacto nela, de pensar que ainda ia ter que ficar aqui e continuar trabalhando. A médica conversou com ela e acabou tudo se resolvendo. A pessoa está super bem agora.
Sou a única mulher na coordenação. Sempre provei que merecia essa confiança e responsabilidade —que é enorme. Eu acho que é realmente uma questão dos tempos mudando. As mulheres se permitindo chegar a esses lugares, e os espaços sendo abertos também para isso, né? Ali dentro do nosso centro [o Centro Polar e Climático, da UFRGS], a maioria de nós somos mulheres.
Precisamos de recursos para treinar essas mulheres para que elas possam ir para o campo. Se a gente tivesse recurso, com certeza teríamos outras mulheres do nosso grupo aqui dentro. Sou a única professora, então acabou que sou a única que está participando nesse momento da coordenação.
A “luzinha” da Antártida acende quando tu entendes a importância para o clima e o ambiente do planeta. A Antártida é o refrigerador do nosso planeta. É impossível viver em um planeta sem a Antártida, ela é uma parte essencial da vida. E não é tão considerada como outras regiões, como a Amazônia.
O nosso trabalho não é só de pesquisa, é de chamar a atenção das pessoas para a importância desse continente.