O ministro Dias Toffoli defendeu, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), a declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Trata-se da regra que isenta de responsabilidade, perante a Justiça, as redes sociais pelo conteúdo postado por seus usuários. O dispositivo diz que elas só respondem por esse conteúdo, caso ele seja julgado ilícito pela Justiça e haja descumprimento, pela plataforma, de uma ordem judicial de remoção.
Ao longo de seu voto, Toffoli considerou que essa norma desconsidera o grau de participação das redes sociais na promoção desses conteúdos – por meio de recomendações algorítmicas, impulsionamentos pagos ou monetizações aos autores –, nem os danos causados a pessoas lesadas por essas postagens até a obtenção de uma decisão judicial que as retire do ar.
Para ele, não é razoável impor às vítimas de publicações ofensivas o ônus de buscar o Judiciário para interromper os danos ocasionados por outros usuários, sobretudo quando as plataformas se beneficiam e favorecem a disseminação desses conteúdos. Ele citou leis recentes, na Europa principalmente, que preveem maior responsabilização das redes sociais na medida de seu conhecimento e grau de vigilância sobre conteúdos ilícitos postados por seus usuários.
“A isenção de responsabilidade só estaria presente caso atuassem de forma neutra, no sentido de que sua conduta fosse meramente técnica, automática e passiva em relação ao conteúdo de seus usuários. Portanto, uma suposta neutralidade dos provedores de aplicações não pode funcionar impreterivelmente como escudo contra sua responsabilização, mormente quando a experiência do direito comparado indica haver, no momento, um esforço para chamar os provedores de aplicação à responsabilidade”, afirmou o ministro.
Toffoli ainda não concluiu a leitura do seu voto, o que deve ocorrer somente na sessão desta quinta-feira (5). Na parte exposta até o momento, ele propôs a derrubada de todo o artigo 19 e seus parágrafos, que disciplinam regras processuais para o ajuizamento dessas ações de remoção de conteúdo na Justiça.
Por outro lado, ele propôs a manutenção do artigo 21 do Marco Civil da Internet, que diz que as plataformas respondem por postagens ou materiais publicados em sua plataforma, independentemente de decisão judicial, caso contenham cenas de nudez ou sexo não autorizadas ou violação de direitos autorais.
Trata-se das hipóteses excepcionais da regra geral de imunidade das redes, pelas quais elas respondem assim que notificadas pelas partes afetadas – no caso, as pessoas com a intimidade exposta indevidamente ou os detentores dos direitos autorais.
Toffoli propôs que essas hipóteses devem ser ampliadas, para abarcar a proteção de “todos os direitos fundamentais” – a expectativa é que, na continuação de seu voto, nesta quinta, ele detalhe, de forma mais precisa, em que situações e como as postagens devem ser removidas após notificação extrajudicial, como já ocorre em caso de violação da intimidade, por exemplo.
“A proteção assegurada por essa norma não se restringe aos direitos à intimidade e à dignidade sexuais porventura ofendidos pela divulgação não consentida de imagens, vídeos, ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais, dizendo respeito à proteção de todos os direitos fundamentais no meio ambiente digital, como são os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, porquanto, ao fim e ao cabo, todos esses direitos emanam da dignidade da pessoa humana como valor fundante do Estado Brasileiro (CRFB/88, art. 1º, III) e, assim, possuem o mesmo status jurídico-constitucional”, afirmou no voto.
O impacto para as redes sociais no julgamento do Marco Civil da Internet
O julgamento do artigo 19 do MCI começou na semana passada e tem sido tratado, por vários ministros, como o caso mais importante a ser decidido neste ano pelo STF. Ele afeta diretamente a liberdade de expressão, na medida em que a regra, em vigor desde 2014, tem a expressa finalidade de impedir a censura na internet.
A lógica é que a responsabilidade por postagens, textos e vídeos em plataformas como X, Facebook e YouTube, por exemplo, recaia, a princípio, sobre o autor, não sobre as plataformas. Caso o material seja ofensivo, a parte atingida deve requerer na Justiça indenização do ofensor, não do serviço intermediário que hospedou a ofensa. Pela regra, as plataformas só podem ser punidas caso descumpram uma ordem judicial de retirada daquele conteúdo, o que implica uma exame da Justiça prévio sobre a (i)licitude do conteúdo.
No processo, as redes sociais defendem a manutenção dessa regra, como forma de proteger a liberdade de expressão dos usuários e o debate público sobre assuntos de interesse geral. Alegam que, se passarem a ser responsabilizadas a partir de notificação direta de pessoas que se sentem ofendidas por qualquer publicação, passarão a remover todas essas postagens, para eliminar ao máximo o risco de serem punidas com pagamento de indenizações.
No limite, essa obrigação levaria a um estado de censura permanente e generalizada, acarretada pelos próprios usuários, o que acabaria com o próprio sentido da rede social, de uma comunidade de troca de ideias, informações, conhecimento e entretenimento.
Desde o início do julgamento, na semana passada, ONGs e entidades de defesa de minorias defendem maior responsabilização das redes sociais. Alegam que há omissão das empresas de tecnologia na remoção de conteúdos nocivos e danosos para a sociedade, tais como manifestações de racismo, incentivo ao terrorismo, violência e abuso infantil, entre outros.
Entre os ministros, o principal interesse é conter “discursos de ódio” e “ataques às instituições”, especialmente o próprio STF, que nos últimos anos passou a ser alvo de críticas avassaladoras nas redes. Para os integrantes do tribunal, a maior parte das manifestações negativas são baseadas em mentiras e distorções e catalisam um movimento de revolta popular contra a Corte que resultaram, por exemplo, na invasão e depredação do edifício-sede em 8 de janeiro de 2023. Eles também se queixam de ameaças e ofensas contra si e seus familiares.
Na semana passada, Alexandre de Moraes, o mais duro crítico das redes sociais, as acusou de falharem na ocasião, por não retirarem, por iniciativa própria, convocações para o ato, considerado por ele e todos os outros ministros como uma tentativa de abolir o STF.
“O dia 8 de janeiro demonstrou a total falência do sistema de autorregulação de todas as redes. É faticamente impossível defender, após o 8 de janeiro, que o sistema de autorregulação funciona. Falência total e absoluta instrumentalização e, lamentavelmente, em parte conivência. Falência porque tudo foi organizado pelas redes”, afirmou.
Na continuidade do julgamento, nesta quinta, depois de Toffoli, votará o ministro Luiz Fux, relator de uma ação semelhante. A decisão final resultará dos votos dos 11 ministros, e terá repercussão geral, contendo uma tese que valerá como uma regra a ser seguida.