Muitos caminhos levam ao Alzheimer. Multifatorial, a doença, que destrói as células cerebrais, causando perda de memória, declínio cognitivo e alterações comportamentais, ainda não tem suas causas esclarecidas com precisão. Sabe-se que fatores ambientais podem ser decisivos –como a baixa escolaridade, isolamento social e tabagismo.
A genética também desempenha papel importante e, entre os elementos hereditários, há um que pode abrir vias para tratamentos: a ancestralidade. No Brasil, aliás, o tema é especialmente relevante: um estudo publicado na semana passada mostrou que somos o país mais miscigenado do mundo.
A ligação entre a doença e o nosso DNA está em um gene específico: o APOE, detentor da receita para fabricar a apolipoproteína E, que transporta lipídios no sangue. O gene tem três variantes: a APOE 3 (a mais comum), a APOE 4 (tipicamente associada ao risco de Alzheimer) e a APOE 2 (associada à proteção contra Alzheimer). A diferença entre elas é mínima: de uma para a outra, muda apenas uma base nitrogenada. Se o APOE fosse um zíper, seria como se um único dente tivesse um formato distinto. É o suficiente para o fecho emperrar.
Na prática, a ação desse gene está relacionada a diversos processos no cérebro que podem levar ao Alzheimer. Em hipóteses mais recentes, a APOE 4 foi associada à disfunção da bainha de mielina –a camada de gordura que reveste os axônios (uma parte do neurônio), essenciais na comunicação cerebral. Na evolução da doença, essa degradação do metabolismo lipídico afeta a função e até mesmo a sobrevivência dos neurônios. Mas esse dano causado pela APOE 4 talvez não aconteça com todo mundo.
É nesse ponto que entra a pesquisa do biólogo Michel Naslavsky, professor e pesquisador em genética da USP. Desde criança, o pernambucano sempre foi muito curioso –abria, desmontava e remontava videocassetes, revirava computadores usados. Queria trabalhar com robótica, até se deparar, no ensino médio, com a genética. “É uma engenharia dentro da biologia, uma forma de entender como a vida funciona.”
Ao longo de sua carreira científica, que começou com a graduação em biologia na Universidade Federal de Pernambuco, ele estudou neurociência e acabou chegando à genética médica populacional -tema de sua tese de doutorado na USP. Um de seus projetos é voltado ao impacto da ancestralidade miscigenada no risco de desenvolvimento de Alzheimer. Ele parte do fato de que a ação do APOE contribui mais para a doença do que outros fatores genéticos —só que esse “mais” varia de acordo com a população.
Isso porque as mutações genéticas e suas interações no genoma sofrem adequações relacionadas ao contexto da população na qual elas ocorreram. Ao longo da história, populações migraram e se misturaram, tanto por processos violentos de colonização e exploração quanto pela globalização. Isso levou à mistura das variantes genéticas e a possíveis impactos em seus efeitos no corpo humano.
“Dados mostram que os europeus parecem mais suscetíveis aos efeitos do APOE 4 do que os africanos”, diz Naslavsky. Como a prevalência de Alzheimer é parecida nessas duas populações, a hipótese do biólogo é que pessoas com ascendência africana podem ter outros genes influenciando no desenvolvimento da doença.
Crítico do processo de miscigenação no Brasil, que deriva sobretudo da colonização europeia e escravização de povos africanos e indígenas, Naslavsky reconhece que a população brasileira é especialmente informativa para sua pesquisa: quase 90% de nós temos algum grau de mistura entre raças e etnias. Com isso, há pessoas com todas as condições possíveis no que se refere à atuação do APOE.
Na prática, o cientista trabalha com dois conjuntos de amostras. De um lado, analisa pessoas já falecidas, por meio do sequenciamento de uma amostra do Biobanco para Estudos do Envelhecimento (um banco de cérebros) da Faculdade de Medicina da USP. Do outro, estuda participantes idosos vivos, fazendo sequenciamento e análise do cérebro por neuroimagem no Hospital Israelita Albert Einstein.
Depois disso, deve analisar a lipidômica dos grupos —ou seja, as vias pelas quais os lipídios impactam o cérebro. Esperados para o próximo ano, os resultados do estudo devem permitir entender como o Alzheimer acontece na população brasileira. E, caso identifique um caminho para o desenvolvimento da doença até então desconhecido, a pesquisa pode embasar novos tratamentos.
*
Murilo Bomfim é jornalista.
O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.