O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quinta-feira (12) a sessão de julgamento do Recurso Extraordinário (RE) que decidirá se municípios têm ou não a competência legislativa para instituir guarda civil para fazer policiamento preventivo e comunitário. Em resumo, o STF discute o limite de atuação dos municípios para disciplinar as atribuições das Guardas Municipais que se espalham pelo Brasil.
Na prática, o Supremo vai decidir se cidades podem ter guardas agindo com o mesmo poder de polícia, embora a maioria já atue dessa forma. O lado positivo do poder de polícia é que os guardas podem atuar no patrulhamento ostensivo, fazendo trabalho similar ao da Polícia Militar, que atua dissuadindo e respondendo a crimes como roubos e furtos em situação de flagrante.
O lado negativo é o aumento potencial de abusos de autoridade. Os guardas civis têm atribuição de agir em casos de menor potencial ofensivo, como impedir a depredação de praças, acesso a parques fora de horário previsto, pichação de prédios públicos, entre outros. De posse de armas de fogo, por vezes até fuzis, e sem o mesmo treinamento da Polícia Militar, os guardas civis podem abusar da força contra pessoas que não necessariamente são criminosos perigosos, segundo analistas.
Um exemplo disso é um caso que ocorreu em 2022 em Belo Horizonte. Câmeras de monitoramento registraram uma abordagem violenta de três agentes da Guarda Municipal a um motociclista. Além de espancar o rapaz, os guardas prenderam um casal, um advogado e a namorada, que passava pelo local e filmou a ação. O casal foi preso pelos GMs por “desacatado à autoridade” e ficou na delegacia por 12 horas. Os agentes foram afastados pela prefeitura de BH.
Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, existem no país 1.467 Guardas Municipais constituídas, em um total de 5.570 municípios. Juntas, somam um efetivo de aproximadamente 100 mil agentes.
Em outro levantamento – do IBGE e que considerou dados anteriores apontando em torno de 1,3 mil municípios com GMs, 30% das Guardas Municipais aparecem armadas, somando próximo de 400 cidades, nas quais os agentes portam armas letais que vão desde pistolas a fuzis. Do total apontado pelo IBGE:
- 341 Guardas Municipais usavam, em 2023, armas de fogo e armamento não letal;
- 55 municípios usam apenas armas de fogo;
- 519 municípios usam apenas armas não letais;
- 407 municípios não usavam nenhum tipo de arma.
O relator do recurso no STF é o ministro Luiz Fux. Ele fez uma apresentação do resumo do tema ainda no mês de outubro e a apreciação do mérito será feita agora. Entidades ligadas à corporação apostam na aprovação. Já os críticos esperam “bom senso” do Supremo ao reconhecer que essa função cabe às Polícias Militares, que estariam capacitadas para a função, e não às Guardas Municipais.
O ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso extraordinário e disse ser constitucional “a atribuição às guardas municipais do exercício das atribuições de policiamento preventivo e comunitário, diante de condutas potencialmente lesivas aos bens, serviços e instalações do ente municipal, em cooperação com os demais órgãos de segurança pública, no âmbito de suas respectivas competências”.
Na sessão sobre o tema em outubro, também foram ouvidas as partes e interessados, como instituições admitidas no processo, favoráveis e contrárias.
Recurso sobre Guardas Municipais no STF se arrasta há anos
O recurso em julgamento no STF sobre as Guardas Municipais foi apresentado pela Câmara Municipal de São Paulo contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) de 2010, que julgou inconstitucional uma lei que dava à Guarda Civil Metropolitana o poder de fazer policiamento preventivo e comunitário para proteger bens, serviços e instalações municipais e para fazer prisões em flagrante por qualquer delito.
No Recurso Extraordinário que está sendo julgado no STF, representantes do Sindicato dos Guardas Civis Metropolitanas de São Paulo, da Federação Nacional de Sindicatos de Servidores das Guardas Civis Municipais e do Sindicato dos Servidores da Guarda Municipal de Curitiba reiteram que as guardas civis integram o sistema de segurança pública, e a atribuição de policiamento preventivo e comunitário é constitucional.
No outro polo, o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets) e da Associação dos Oficiais da Polícia Militar e Corpo de Bombeiro de Santa Catarina avaliam que as guardas civis devem se limitar à proteção de bens e serviços de municípios e, excepcionalmente, realizar prisões em casos de flagrante.
O coronel da reserva remunerada da Polícia Militar do Paraná (PMPR) Alex Erno Breunig, vice-presidente da Associação dos Oficiais da PM e dos Bombeiros Militares do Paraná (Assofepar), diz que o tema tem repercussão imediata em dois âmbitos: constitucional e prático.
“No âmbito constitucional, em face da atual dicção [redação] do artigo 144 da Constituição Federal, temos convicção que os municípios não têm competência para instituir guardas municipais ou polícias municipais com competência de polícia ostensiva e preservação da ordem pública, que são competências exclusivas das Polícias Militares”, argumenta.
Para Breunig, no campo prático, há aspectos relacionados ao atendimento à sociedade. “Temos convicção que a eventual alteração constitucional representa um grande risco à sociedade, que poderá ficar desassistida de policiamento em face de uma competência comum entre instituições [Guardas Municipais e Polícia Militar]: cão que tem dois donos morre de fome”, opina.
O vice-presidente da Assofepar avalia que as Guardas Municipais possuem uma competência constitucional importante, se exercida na plenitude, o que deve ser mantido pelo STF. “Esta competência representa um grande avanço na segurança pública. Se fizerem um proficiente trabalho nas escolas, creches, parques, terminais urbanos, seria um ótimo serviço à sociedade”, reforça.
Já o secretário nacional de Segurança Pública, Mario Luiz Sarrubbo, ligado ao Ministério da Justiça, diz ser um entusiasta das Guardas Civis Municipais, mas afirma que “elas não devem ser polícia”. Ao programa Direto ao Ponto, da Jovem Pan, ele disse na semana passada que é “necessário um preparo” específico, sugerindo que as Guardas não o tem, e que o Brasil é muito grande e assim é difícil controlar a atuação de todas essas corporações.
As Guardas Municipais que estão no foco do debate do STF são parte do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) instituído pela Lei 13.675, aprovada em 2018, durante o governo de Michel Temer (MDB) e que agora o governo federal quer transformar em uma PEC da Segurança Pública.
Para o secretário, as GMs têm papel fundamental na segurança pública “porque trabalham com a guarda patrimonial”, cuidando dos espaços públicos.
Já o vice-presidente da Assofepar diz que a segurança pública não é um problema só das polícias, mas defende a divisão de competências. “É responsabilidade de todos. Os municípios têm muito a colaborar, sem se imiscuir na polícia ostensiva e preservação da ordem pública”, opina.
Presidente da AGM Brasil diz que Guardas têm previsão constitucional à segurança pública
O presidente da Associação das Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil), Reinaldo Monteiro, afirma que as GMs têm previsão constitucional para atuar na segurança pública e critica a fala do secretário nacional sobre os agentes não estarem capacitados.
Monteiro afirma que os profissionais são altamente preparadas, que recebem capacitações constantes para uso de armas letais em treinamentos anuais e estão preparados para fazer o que já têm feito.
Segundo ele, essa condição de policiamento preventivo e comunitário já ocorre em previsão constitucional e por reconhecimentos que vêm sendo formados ao longo dos anos pelo STF em decisões constantes sobre a competência das corporações na segurança pública, sobretudo à atenção primária da segurança.
Monteiro diz que não há concorrência com as polícias militares porque as Guardas Municipais seriam formadas com base na matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública. “Se a Guarda Municipal não tem preparo, a incompetência é do próprio governo”.
Para o presidente da AGM Brasil, é essencial que o STF reconheça a função de polícia, permitindo, na prática, a descentralização do poder na segurança pública, em benefício da população.
Para Monteiro, as Guardas devem, além de integrar a segurança pública preventiva, manter-se vigilantes sob espaços públicos, sem deixar de monitorar as estruturas que pertencem aos municípios.
Se nenhum ministro pedir vistas ao processo, a expectativa é de que a votação do recurso extraordinário tenha resultado ainda nesta quinta-feira (12).
Guardas municipais cometem excessos
Nos últimos anos, casos de supostos excessos de GMs ganharam repercussão. Em Cascavel (PR), câmeras de monitoramento flagraram o momento que um casal foi abordado na noite de Natal do ano passado. O casal estava em um carro que teria fugido de uma abordagem. Os ocupantes do veículo só teriam parado em frente à residência onde moravam e foram abordados pelos agentes com pistolas e armas de grosso calibre em punho.
Um dos guardas deu um chute nas costas do rapaz que havia descido do carro com as mãos na cabeça. A mulher se deitou no chão e chegou a ficar sob a mira de uma arma de grosso calibre. A Secretaria de Segurança Pública do município os afastou das funções, disse não compactuar com atuações truculentas e que esse não é o treinamento recebido pelos agentes.
Em Aracaju, em 2023, um artista passou por uma abordagem violenta que viralizou nas redes sociais. Agentes o abordaram dentro de um ônibus.
Testemunhas disseram que o rapaz tentava que o motorista do coletivo abrisse a porta para uma mãe com uma criança entrar, mas o condutor partiu sem as duas. Ao questionar o motorista, se viu surpreendido por guardas civis que estavam próximos e foram acionados pelo condutor.
Quem estava no coletivo disse que, sem mesmo saber o que estava acontecendo, agrediram o rapaz e o arrancaram do ônibus. Um dos agentes chegou a sacar uma arma contra o rapaz e ameaçou terceiros que filmavam a ação.
Na época, a Guarda Municipal de Aracaju disse que “a guarnição realizou a abordagem e a situação foi resolvida no local, sem a necessidade da condução das partes à delegacia”, mas afirmou que possíveis abusos devem ser denunciados à ouvidoria da corporação, que segue os trâmites pela corregedoria. A GMA prometeu investigar o caso.
“Casos de violência em abordagens feitas por profissionais da segurança infelizmente não são incomuns, vejamos os episódios com policiais militares em São Paulo e em outros estados, nada justifica a violência, mas é essencial termos profissionais muito bem treinados, preparados, bem remunerados e com o psicológico em dia”, destaca o especialista em segurança pública Marcelo Almeida.
Para Almeida, profissionais da segurança precisam ter uma remuneração adequada que justifique o risco à função. “Não me parece o caso das guardas municipais. São homens e mulheres, em sua maioria, mal pagos, sobrecarregados, exaustos e com uma arma na cintura. A sociedade precisa debater isso. Se terão poder de polícia, deverão receber como tal ter qualificação constante”, avalia.