Uma das apostas do governo para auxiliar na implementação da reforma tributária e no combate à sonegação fiscal é o split payment. Desconhecido do grande público, o recurso tecnológico está sendo desenvolvido pela Receita Federal em parceria com outras instituições e deve estrear em janeiro de 2026.
O termo em inglês pode ser traduzido como “pagamento dividido”. Mas não se trata de um parcelamento da compra. O que vai ocorrer é que, no momento em que o produto ou serviço for pago pelo consumidor, o sistema já vai separar o valor que cabe ao vendedor e o valor do imposto – e este será imediatamente encaminhado, nas devidas proporções, aos governos federal, estadual e municipal.
Dessa forma, a coleta de impostos é adiantada. Hoje o recolhimento dos tributos é feito depois que as vendas são concluídas, que as empresas fazem a contabilidade de tudo o que foi comercializado e descontam os créditos da cadeia de produção para, só então, pagarem seus tributos no mês seguinte.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que o split payment pode auxiliar na arrecadação, além de ser importante para a implementação da reforma tributária, no sentido de dar mais transparência para o consumidor e evitar desconfianças entre os entes federativos. Porém, também afirmam que a ferramenta pode ter impactos negativos, especialmente para pequenos e médios negócios.
Ainda em fase de desenvolvimento pelos técnicos da Receita Federal, o split payment só poderá ser utilizado em transações feitas por meios digitais, como boleto, pix, débito automático ou cartão de crédito.
O split payment altera a forma como os tributos são recolhidos, ao dividir o valor do pagamento entre o destinatário e o Fisco no momento da transação, diz Cassius Leal, fundador e CEO da Advys Contabilidade.
“Esse modelo visa combater a sonegação fiscal, uma vez que, com o recolhimento direto pelo governo no ato do pagamento, a possibilidade de inadimplência tributária é reduzida. Além disso, esse método traz transparência, pois elimina a necessidade de empresas intermediárias fazerem a retenção e repasse dos tributos posteriormente, como ocorre atualmente”, afirma.
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Marcus Pestana, afirma que o split payment ainda traz ganhos de transparência para o contribuinte que, já no ato da compra, terá clareza de quanto está pagando. “A gente vai saber em cada operação de consumo quanto a gente está pagando de imposto. Hoje ele vem embutido, você não sabe direito o que está ali dentro”, afirma.
Além disso, Pestana avalia que o sistema evita desconfianças dos entes federativos em relação à União, na hora do repasse dos impostos, o que será especialmente útil durante a implementação da reforma tributária. Ao longo da história brasileira, ele descreve que houve uma série de movimentos centralizadores e descentralizadores na arrecadação, o que gerou desconfiança entre os entes federados.
“E aí fica esse pêndulo de centralização-descentralização que é característico da história do Brasil em termos tributários. Então, é extremamente necessário, inclusive para harmonização dos três níveis de governo, para que não haja desconfianças, de que não repassou todo o dinheiro. Então, quanto mais automático for, tanto melhor”, complementa.
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Ao mudar lógica de recolhimento, split payment pode afetar pequenos negócios
De acordo com o doutor e mestre em Direto Tributário pela PUC-SP e presidente da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da OAB-SP, André Félix Ricotta de Oliveira, o split payment vai mudar a sistemática do recolhimento de tributos no país.
“Todo o pagamento que uma empresa ou cliente realizar por meio de instituição financeira, seja via boleto ou cartão de crédito, de débito, o sistema financeiro já vai fazer a divisão. O que é do vendedor e o que é devido para a União, para os estados e municípios, o IBS e o CBS. Deste modo, muda toda a sistemática dos tributos que incidem sobre consumo”, afirmou.
O tributarista afirma que muitas empresas, em razão dos créditos que acabam por descontar a reincidência dos tributos ao longo da cadeia produtiva, nem chegam a pagar esses impostos. Outras, em razão do fluxo de caixa, também podem optar por atrasar o pagamento dos tributos e arcar com uma multa, direcionando os recursos para pagar fornecedores, por exemplo, o que não poderá mais ocorrer nos casos de pagamentos digitais.
Juliana Vaz, advogada tributarista da VBSO Advogados, explica que uma das preocupações em relação à adoção desse sistema reside justamente no impacto sobre o fluxo de caixa das empresas, já que o valor referente aos tributos será imediatamente destinado ao Fisco. No modelo atual, a empresa pode gerir os recursos até a data do vencimento.
“Isso vai exigir das empresas um rigor maior para se adaptar ao novo modelo, cumprir com seus compromissos financeiros e manter sua estabilidade, o que pode representar um grande desafio para pequenas e médias empresas”, afirma.
Por isso, o sistema traz desafios substanciais para pequenas e médias empresas, que têm dificuldade em lidar com a alta carga tributária e a complexidade burocrática no Brasil.
“Adicionar um novo sistema de recolhimento automático de tributos, sem fornecer suporte adequado, pode comprometer o funcionamento dessas empresas, principalmente as que não têm estrutura tecnológica ou equipe contábil para lidar com essa inovação”, diz Cassius Leal, da Advys Contabilidade.
Ele avalia que, ao requerer sistemas tecnológicos robustos para garantir a execução correta do fracionamento dos pagamentos, o split payment pode trazer a necessidade de investir na atualização de sistemas e treinamento de equipes para garantir a conformidade com a nova regra. Será um gasto a mais para as empresas.
Tempo é o maior desafio do governo no desenvolvimento do split payment
A restituição e financiamento para fazer esses ajustes por parte da iniciativa privada é uma das preocupações do sistema financeiro a respeito da implantação do split payment, conforme avalia Juliana Vaz, da VBSO Advogados.
Na ótica do governo, no entanto, um dos maiores desafios é o tempo. Marcus Pestana, da IFI, cita que o próprio secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, destacou que o tempo é o principal desafio quando se trata do split payment.
As expectativas são de que as propostas de regulamentação da reforma tributária sejam aprovadas ainda neste ano. Desse modo, o governo começaria a fazer os testes com o split payment em janeiro de 2026.
Segundo Pestana, Appy teria afirmado que o desafio é difícil, mas totalmente viável. “Quem está mexendo, com a mão na massa, está otimista. E hoje a tecnologia permite tudo, com inteligência artificial, não é nenhum bicho de sete cabeças”, diz o diretor-executivo da IFI.
Em junho, em painel sobre o split payment durante o XVII Encontro Nacional de Administradores Tributários (Enat), o gerente do Serpro e gestor nacional do Projeto Estratégico Reforma Tributária Brasileira, Robson Dias Lima, afirmou que o governo tem conhecimento para desenvolver o sistema.
“A minha função aqui hoje é dizer isso para vocês: apesar de toda complexidade e mudança em relação ao modelo atual, o split payment é, sim, viável tecnicamente. Não se preocupem com a tecnologia, porque a tecnologia dá conta”, garantiu.
Sistema precisará dar conta de créditos e transição da tributação da origem para o local de consumo
Outro ponto é a adequação do split payment ao sistema de créditos de produção. Atualmente, o sistema tributário permite que impostos cobrados, por exemplo, na indústria metalúrgica para fabricação de peças automotivas, não sejam duplamente cobrados na montagem final dos carros. Assim, as montadoras descontam esses créditos de seus impostos.
De acordo com André Félix, a equipe da reforma tributária aventou a possiblidade de devolver os créditos para a indústria em um segundo momento. No entanto, a ideia não foi bem aceita e, diante do impasse, o sistema está sendo desenvolvido de modo a contabilizar os créditos imediatamente.
“O sistema financeiro já vai enxergar se eu tenho créditos e a alta tecnologia já vai fazer esse cruzamento na hora da venda. Se eu não tenho crédito, realiza o pagamento do imposto; se eu tenho crédito, apenas deduz o imposto, excluindo os créditos”, explicou.
A transição da destinação dos impostos, do local de origem da produção para o local de consumo, é mais um aspecto da reforma que deve ser considerado pelo split payment. Segundo Marcus Pestana, essa transição levará 50 anos, descontando e repassando pequenos percentuais da arrecadação de um local para o outro.
O diretor-executivo da IFI afirma que esse longo período de transição é necessário, pois, caso fosse feita de forma mais rápida, poderia gerar perdas muito bruscas para municípios e estados de origem. O algoritmo, no entanto, terá que refletir essa transferência gradativa.
“Hoje, graças ao avanço da tecnologia da informação, de todas as ferramentas de que a gente dispõe, é totalmente viável. As equipes das receitas Federal, estaduais e municipais estão trabalhando em conjunto, eles estão fazendo integrados, os três níveis de governo”, afirma.
Estudos europeus concluíram que adoção do split payment não cobria custos de desenvolvimento e implementação
Com a ferramenta ainda em elaboração, o governo não detalhou seus custos. A Gazeta do Povo enviou questionamentos à Receita Federal e ao Serpro a respeito do sistema, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto à manifestação.
De acordo com André Felix, na União Europeia estudos mostraram que os ganhos de arrecadação gerados pelo split payment com o combate à fraudes e inadimplência não eram significativos diante de seus custos de implementação.
“Tentaram implementar na União Europeia e não deu certo, porque o custo para implementar seria maior que a sonegação evitada. E também poderia trazer prejuízo na gestão das empresas”, comentou.
Da mesma forma, Cassius Leal avalia que a implementação do split payment requer investimentos significativos em tecnologia, tanto por parte do governo quanto das empresas. Além disso, a manutenção do sistema requer monitoramento contínuo e atualização tecnológica, o que gera custos operacionais.
“Em contrapartida, os ganhos esperados para a Receita Federal podem ser expressivos. A redução de fraudes e da evasão fiscal, aliada à arrecadação direta e contínua, pode compensar os custos de implementação no médio a longo prazo. No entanto, é crucial que o governo publique estudos detalhados sobre os custos e benefícios dessa proposta no contexto brasileiro, uma vez que o cenário tributário aqui é diferente do de outras nações”, diz.
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