Peço licença nesta semana para sair do tema da coluna. Quero falar sobre a finitude da vida e questões de dignidade e saúde pública que ela traz.
Há pouco mais de um ano, meu pai foi diagnosticado com um câncer de orofaringe. A detecção veio tarde para que o tratamento começasse com cirurgia. A alternativa era um regime de quimioterapia, seguido por sessões de radioterapia, na esperança de eliminar o tumor, ou ao menos reduzi-lo a ponto de torná-lo operável —o que ocorreu, com cirurgia realizada no último 1º de novembro.
Havia então a esperança de remissão, mas um exame de imagem no fim de janeiro mostrou que o tumor ainda subsistia e voltava a crescer, agora inoperável e incurável. Na melhor das hipóteses, os médicos poderiam tentar retardar seu avanço. Foi quando meu pai começou a falar comigo sobre eutanásia.
No Brasil, a prática é proibida. Comecei a pesquisar o assunto, ler sobre casos de doentes terminais que buscam o recurso no exterior. A Colômbia parece ter a legislação mais avançada da América Latina a respeito; o Canadá limita o recurso a seus cidadãos; a Suíça só permite a morte assistida. Diante dos entraves, meu pai acabou concordando em fazer por aqui um protocolo de imunoterapia, mas sem jamais ter perdido de vista que seu maior desejo era encerrar o sofrimento.
Na semana anterior ao início do tratamento, ele teve uma síncope e foi levado ao hospital. Passou quase um mês internado, sob cuidados paliativos. O sofrimento pesado já vinha desde a radioterapia, acentuou-se com a cirurgia (em que ele ficou com o rosto desfigurado, perdeu os movimentos de metade da face, a voz e a capacidade de deglutir) e mais ainda com o crescimento do tumor, que, pressionando o crânio, provocava dores de cabeça lancinantes. Meu pai perdeu mais de 40 kg entre o diagnóstico inicial e o fim de tudo.
No hospital, concluiu-se que a única alternativa para impedir que morresse de inanição seria uma gastrostomia. Meu pai recusou a opção, como era seu direito, e passou os últimos dias pedindo diariamente aos médicos para ser sedado —o que os protocolos impediram até cerca de 30 horas antes de sua morte, às 22h55 do dia 10 de maio.
Ainda tento fazer sentido de tudo isso –principalmente da quantidade de sofrimento imposta a uma pessoa lúcida, com diagnóstico terminal, que apenas deseja terminar seus dias com dignidade.
Precisamos conversar sobre eutanásia. Há quem acredite que cabe a Deus decidir a hora de cada um. Os espíritas acham que antecipar a morte é um erro, pois há aprendizado a ser feito até o último instante. Mas todas as religiões reconhecem o livre arbítrio. Deveria, portanto, ser um direito individual a opção de antecipar um desfecho inevitável, preservando a dignidade e abreviando o sofrimento.
Também cabe pensar nos aspectos de saúde pública. Quantos recursos médicos não são gastos para manter vivas pessoas que não desejam mais viver, passarão seus últimos dias em profundo sofrimento e morreriam de toda forma?
A proibição incondicional da eutanásia por opção do paciente terminal no Brasil deveria ser repensada. Sugiro que algum dos nossos nobres deputados se debruce sobre a questão. A proibição não protege o bem-estar dos pacientes, não ajuda os médicos, não faz o melhor uso do sistema de saúde e não respeita a liberdade de credo consagrada na Constituição.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.