Registradas por câmeras e amplamente divulgadas, agressões e mortes resultantes de abordagens da Polícia Militar de São Paulo contra pessoas desarmadas provocaram uma mudança de tom nas declarações do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre a violência policial.
Ponto de virada no discurso do governo paulista, a cena em que um policial militar é flagrado jogando um homem do alto de uma ponte no bairro Cidade Ademar, na zona sul da capital, foi prontamente criticada pelo governador nesta terça-feira (3).
“Chega ao absurdo de jogar uma pessoa da ponte”, disse Tarcísio, também fazendo menção a outro caso recente, em que um suspeito de furto foi executado com tiros pelas costas.
O caso ocorreu em 3 de novembro, quando Gabriel da Silva Soares, um homem negro de 26 anos, foi morto a tiros pelas costas disparados por um policial militar de folga em frente a um mercado no Jardim Prudência, também na zona sul.
Também em novembro, o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, foi morto por um policial em um edifício da Vila Mariana, bairro de classe média da região sul paulistana. O rapaz foi perseguido após dar um tapa no retrovisor da viatura e entrou em um hotel, onde levou o tiro à queima-roupa.
Sem registro de imagens, mas com grande repercussão pública, o menino Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, foi morto em uma operação policial em Santos. Na ocasião, chamou a atenção a ausência de declarações do governo sobre o caso.
Para especialistas, o governo tenta corrigir o rumo de um acirramento da letalidade policial. Ainda assim, eles apontam que críticas pontualmente dirigidas a agentes e não à corporação, como fez Tarcísio, reforçam a ideia de que a segurança pública estadual está no caminho certo.
“Vejo mudança de discurso que vinha eximindo policiais da culpa por crimes bárbaros”, diz Pablo Almada, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “Mas ao criticar apenas o policial, tratando como caso isolado, o governador desconsidera centenas de mortes provocadas por policiais neste ano.”
Com 580 mortes provocadas por agentes de segurança em serviço ou de folga, o ano de 2024 já é o mais letal desde 2020, antes do início do uso das câmeras corporais.
Também fazendo uma defesa institucional da polícia, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou que o caso do homem arremessado não encontra respaldo em procedimentos operacionais da PM.
Derrite afirmou ter determinado ao comando da Polícia Militar o afastamento imediato de todos os policiais envolvidos. Segundo o secretário, eles passariam a cumprir expediente administrativo na Corregedoria da Polícia Militar até a conclusão da investigação.
Apesar de não dar sinais de que pretende promover mudanças estruturais, a gestão Tarcísio se vê numa encruzilhada que força, ao menos em parte, uma mudança de discurso, segundo Camila Vedovello, pesquisadora da Unicamp sobre chacinas.
É que casos como o do aluno de medicina morto ou homem atirado da ponte tendem a reduzir o apoio a posturas truculentas da polícia porque fazem com que parte da sociedade se coloque no lugar da vítima, diz a especialista. “A pessoa olha aquela imagem e pensa: eu poderia estar no lugar daquele homem jogado da ponte”, comentou.
Ouvidor das polícias de São Paulo, Claudio Aparecido Silva vê a mudança da postura do governador como reação a uma situação provocada pelo discurso do próprio governo e que, agora, transborda.
Claudinho, como é conhecido, ressalta que a escalada da violência tem também resultado em baixas do lado da polícia, citando duas mortes de policiais da Rota (tropa de elite da PM, conhecida pela alta letalidade), o que não acontecia há duas décadas, diz.
O ouvidor aponta ainda as operações Escudo e Verão, que somaram mais de 90 mortos na Baixada Santista, além de cinco policiais, como materializações da postura da cúpula da segurança paulista.
Ele lembra que, pressionado por organizações que denunciaram as mortes ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), Tarcísio chegou a dizer que não estava “nem aí”.
“Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse o governador.
A declaração foi dirigida à Conectas Direitos Humanos e à Comissão Arns, que levaram a queixa à ONU, conforme revelado pela coluna de Mônica Bergamo.