No intervalo de 16 dias, dois eventos sobre psicodélicos trataram da dificuldade política de retomar o benefício dessas substâncias como alternativa psicoterápica. Após o 2º Congresso Brasileiro sobre Psicodélicos no Rio, foi a vez do 16º Simpósio de Psicobiologia em Natal levantar a bandeira “psicodélicos no SUS”, no último fim de semana.
A reunião atraiu cerca de 200 pessoas ao auditório da reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para três dias de palestras e debates sob o tema “Psicodélicos na Saúde Mental – Traçando o futuro de terapias inovadoras”. Ouviram-se muitos alertas sobre o risco de elas recaírem no limbo a que foram relegadas por mais de 30 anos, alijando milhões que poderiam beneficiar-se delas.
“[Psicodélicos no SUS] não é uma frase ingênua”, disse na abertura Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN, que coordena o Centro Avançado de Medicina Psicodélica (Camp) e estudos com dimetiltriptamina (DMT) da jurema-preta, composto também presente na ayahuasca, para tratar depressão. “É uma frase de orientação.”
O uso de psicodélicos é milenar. No último dia 13 o periódico Scientific Reports trouxe artigo de pesquisadores da Itália e dos EUA indicando a presença em um vaso egípcio do século 2 a.C de arruda-da-síria (Peganum harmala), até hoje usada com jurema em círculos neoxamânicos brasileiros para alterar o estado de consciência.
A ayahuasca e os cogumelos do gênero Psilocybe, ditos “mágicos”, nunca deixaram de ser usados religiosa ou clandestinamente, sobretudo em países como Peru, Brasil e México. As igrejas sincréticas Santo Daime e União do Vegetal (UDV) se espalharam pelo Brasil e pelo mundo, assim como neoxamãs.
Apesar disso, quando a ciência voltou a pesquisar seus compostos psicoativos, a ressurgência recebeu o apelido canhestro de renascimento psicodélico. “Que renascimento é esse?” —questionou no simpósio Fernando Beserra, da Associação Psicodélica do Brasil (APB).
Pois o espectro do status quo biomédico volta a rondar o ressuscitado e o ameaça com uma tripla psicotomia: da psiquê (alma, ou mente) como alvo, com o reforço do modelo farmacológico; da psicoterapia, de volta ao ostracismo perante psiquiatras; e da própria psicodelia, o efeito subjetivo (“viagem”) que alguns neurocientistas tentam expurgar de futuros tratamentos.
O alerta foi dado na última palestra pela antropóloga brasileira Beatriz Labate, do Instituto Chacruna (ONG de São Francisco, Califórnia): “Não conseguimos encaixar [psicodélicos] no modelo da FDA. Essa narrativa não deu certo”.
Ela se referia à rejeição pela agência de fármacos dos EUA, em agosto, da psicoterapia assistida por MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). “E o que vem depois pode ser muito pior, mais biomédico, mais reducionista”, alertou.
Para Labate, a ciência brasileira deveria deixar de imitar esse modelo fracassado e tirar proveito da experiência acumulada aqui para dar contribuição original à reabilitação clínica dos psicodélicos. Um dos pontos fortes do contexto tradicional da ayahuasca, seja em rituais indígenas ou sincréticos, é o uso comunitário de substâncias modificadoras da consciência, como o chá e rapés indígenas.
Luís Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp, afirmou que uma noção valiosa de povos originários está no conceito de bem-viver, que não se aplica só ao indivíduo. Precisa também abarcar o coletivo e o convívio harmônico com a natureza. Em outras palavras: não se resolve a saúde mental tratando só de cada pessoa.
A coordenadora do simpósio, Nicole Galvão-Coelho, foi co-autora de Fernanda Palhano-Fontes (ambas da UFRN) num ensaio clínico de 2019 que mostrou a eficácia da ayahuasca para mitigar depressão resistente a medicamentos. Estudo pioneiro, o primeiro a testar um psicodélico contra o transtorno no sistema duplo cego com controle por placebo.
No segundo dia do evento, ela e Tófoli (Unicamp) tiveram publicado, com colegas da Austrália e da Espanha, artigo confirmando efeitos benéficos do chá com 7.576 usuários em mais de 50 países. Muitos que responderam ao questionário usam ayahuasca em contexto comunitário, como cerimônias religiosas.
Outro palestrante no simpósio, o médico Bruno Rasmussen Chaves, já submeteu mais de 2.000 dependentes químicos a doses de ibogaína em Ourinhos (SP). Para cada caso é preciso obter da Anvisa autorização especial para importar a versão semi-sintética dessa substância de plantas africanas, o que encarece o acesso ao tratamento –que Rasmussen indica produzir resposta em até 70% dos pacientes.
Diante das várias indicações do potencial terapêutico, torna-se difícil justificar por que psicodélicos ainda não estão no SUS. A razão do paradoxo é serem substâncias ainda proibidas na maioria dos países (com exceções como Austrália e Canadá, onde é possível receitar psilocibina e MDMA, e Oregon e Colorado nos EUA, onde facilitadores licenciados podem administrar cogumelos).
Não é trivial levantar a barreira regulatória, para nada dizer do estigma criado pela propaganda proibicionista. Este, como lembrou Tófoli em sua intervenção, nunca foi rejeitado pelo estamento médico, que se apaixonou pelos remédios psiquiátricos surgidos nos anos 1950 a 1980, de maneira concomitante com a rejeição dos psicodélicos e de práticas psicanalíticas.
Algo similar parece estar em curso, um renascimento farmacológico. Empresas empenhadas em patentear e comercializar terapias, como psilocibina para depressão, minimizam o componente psicoterápico do tratamento, reduzindo-o a mero suporte –caso da Compass Pathways, que tem teste clínico de fase 3 em andamento.
A psicoterapia foi um dos obstáculos apontados pela FDA para rejeitar o MDMA. No simpósio, reafirmou-se o papel crucial de terapeutas, como fez Rasmussen ao descrever a riqueza de conteúdos e a reedição catártica de traumas sob efeito da ibogaína, que não se classifica como psicodélico clássico, preferindo alguns chamá-la de onirogênica.
Estudantes na plateia queriam saber qual modalidade de psicoterapia seria mais útil no tratamento psicodélico –transpessoal, cognitivo-comportamental, psicanálise? Sophie Laborde, da equipe de psicólogos nos estudos da UFRN, relativizou a falta de padronização criticada pela FDA dizendo que o importante é o psicólogo dispor das competências necessárias e que essas, sim, seria preciso elencar para credenciar terapeutas psicodélicos.
Se depender de neurocientistas como David Olson, da Universidade da Califórnia em Davis, seria perda de tempo. Ele trabalha para desenvolver psicoplastógenos, que este blog preferiria denominar parapsicodélicos: análogos de ibogaína etc. incapazes de produzir visões, atuando sobre outros receptores neuronais para induzir a formação de conexões neurais (neuroplasticidade).
No dia 14 o grupo de Olson publicou mais um artigo apostando no descarte da experiência psicodélica subjetiva como fator terapêutico. Saiu na prestigiada revista Science, indicativo de que a estratégia farmacológica reducionista segue popular na ciência normal e na biomedicina.
O campo chegou a uma encruzilhada, assinalaram Beserra, da APB, e Labate, do Chacruna. A disputa pela hegemonia entre essa psicodelia sem alma e a vertente psicossocial representada no simpósio em Natal poderia resolver-se com a contribuição das ciências brasileiras, naturais e humanas, mas só com um movimento político e social para levar psicodélicos ao SUS, comparável ao que na passagem do século tornou legal o uso religioso da ayahuasca no país.
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Aviso aos navegantes: Viajei a Natal a convite dos organizadores da UFRN para participar da mesa “Psicodélicos, Uma Jornada Social”