Em dezembro de 2023, duas meninas de 12 e 15 anos de idade descobriram que estavam grávidas dos abusos sexuais sofridos dentro de casa só quando as barrigas finalmente apareceram. Elas recorreram ao serviço de aborto legal do Hospital e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, da rede municipal de saúde de São Paulo, mas não foram atendidas.
A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) havia encerrado, naquele final de ano, o então único serviço de atendimento do município para casos de aborto legal de gestações avançadas, com mais de 22 semanas.
“Ambas eram vítimas de violência sexual, e a coordenação do serviço no hospital encaminhou os casos para nós”, afirma Rebeca Mendes, fundadora e codiretora do Projeto Vivas, organização da sociedade civil criada em 2020 para auxiliar no acesso a serviços de aborto legal e seguro no Brasil, pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e, nos casos não permitidos pela lei brasileira, no exterior.
“Levantamos recursos para que uma delas realizasse o procedimento em Salvador (BA) e a outra, em Belo Horizonte (MG)”, conta Mendes, que precisou ela mesma viajar até a Colômbia anos atrás para realizar um aborto quando engravidou, desempregada, e já era mãe-solo de duas crianças.
“O fechamento do ‘Cachu’ [Hospital da Vila Nova Cachoeirinha] impacta na vida das meninas mais vulneráveis, nas quais a gestação só é identificada quando o corpo infantil deixa de ser infantil para se tornar um corpo gravídico, e isso quase sempre ocorre com mais de 22 semanas de gestação”, completa ela.
Ativistas do Projeto Vivas e de outras organizações de mulheres vão se reunir em frente ao prédio da Prefeitura de São Paulo, no viaduto do Chá, ao meio-dia desta quarta-feira (28), para um protesto contra o fechamento do serviço de aborto legal sem limite de tempo gestacional do Vila Nova Cachoeirinha. Neste 28 de maio é celebrado Dia Nacional de Luta pela Redução da Mortalidade Materna, e o aborto inseguro é uma das cinco principais causas de morte de mulheres no país.
“É um absurdo fechar um serviço [de aborto legal para gestações mais avançadas] que já é tão raro. Isso vai inviabilizando que as mulheres tenham acesso e exerçam esse direito”, afirma Maria Fernanda Marcelino, ativista da Marcha Mundial das Mulheres, que prepara o ato desta quarta.
O fechamento do serviço foi seguido de uma ação popular proposta pelos deputados Luciene Cavalcanti e Carlos Gianazzi (PSOL) e de uma decisão liminar, de janeiro de 2024, em que o juiz Adler Batista Oliveira Nobre determinou que a Prefeitura de São Paulo reativasse o serviço e promovesse busca ativa para que todas as pacientes que tiveram o procedimento cancelado.
A liminar indicou que, caso a Prefeitura optasse por não reabrir o serviço do Vila Nova Cachoeirinha, precisaria indicar outro serviço municipal sem limite de idade gestacional onde mulheres e meninas pudessem ter acesso ao aborto legal. Estipulou, ainda, multa diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento da liminar. Cabe recurso da Prefeitura.
De lá para cá, a gestão de Nunes pode ter acumulado multa de mais de R$ 24 milhões se ficar comprovado que, desde o fechamento do serviço, mulheres e meninas têm enfrentado dificuldade em acessar o direito ao aborto legal na rede municipal de saúde.
Questionada, a Prefeitura informou, em nota, que “não há qualquer descumprimento de decisão judicial” e que cabe recurso da ação popular.
Em abril e em junho de 2024, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo (Nudem) recebeu uma mulher adulta e uma adolescente que alegaram ter buscado atendimento na rede municipal sem sucesso.
“Oficiamos a Secretaria Municipal da Saúde para que indicasse um local que pudesse atendê-las, o que não foi feito no tempo previsto. Com isso, precisamos judicializar os dois casos”, explica a defensora Tatiana Fortes, do Nudem.
“A juíza deferiu o pedido e solicitou que o município apontasse um local onde elas pudessem fazer as interrupções. Uma foi encaminhada para o Hospital da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A outra cansou de esperar pela indicação do município e foi fazer o aborto em outro estado”, conta Fortes.
Uma ação de cumprimento de sentença foi aberta contra a Prefeitura, cobrando que a multa seja paga e esses recursos sejam destinados ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente e para organizações que trabalham com direitos reprodutivos do município de São Paulo. A ação aguarda decisão.
Sobre isso, a gestão Nunes diz que a ação não foi julgada. Em nota, diz que “o atendimento para aborto legal segue ocorrendo em quatro hospitais municipais: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé), Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo), Hospital Municipal Tide Setúbal e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah)”.
A gestão afirma que o serviço foi fechado para que a fila de endometriose pudesse ser zerada. A Folha mostrou que, mesmo com a fila zerada, a Prefeitura não reabriu o atendimento para abortamento legal. Além disso, os abortos feitos em hospitais municipais paulistanos caíram para 15% do total dos abortos legais do município desde o fim do serviço, contra 29% quando o Vila Nova Cachoeirinha estava em funcionamento.
O fechamento do Vila Nova Cachoeirinha gerou um vácuo de serviços que atendiam mulheres com mais de 22 semanas de gestação, o que perdurou até junho de 2024, quando a gestão Tarcísio determinou que os hospitais estaduais passassem a realizar o procedimento, após decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.
Moraes determinou a suspensão de resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proibia a assistolia fetal, procedimento utilizado para interrupção de gestações acima da marca das 22 semanas. Na prática, os abortos nessas condições passaram a ser realizados apenas no Hospital da Mulher (antigo Hospital Pérola Byington).