O Globo de Ouro é uma boa ocasião para afirmar o que vinha se insinuando há anos à consciência nacional, mas esbarrava no transe autodestrutivo que acometeu o país na última década: Fernanda Torres é a maior artista brasileira da sua geração.
Coube um momento histórico difícil a essa fornada de brasileiros nascidos nos anos 1960, que é também a minha – chamada de Geração Coca-Cola por Renato Russo, um de seus membros mais ilustres.
Fazíamos música, mas nunca seríamos um Chico ou um Caetano. Montávamos peças, mas jamais chegaríamos à grandeza de Fernanda Montenegro. Escrevíamos livros, mas nem sinal de uma nova Clarice. Dirigíamos filmes, mas onde estava a fúria santa de Glauber?
Cevada em ideias meio utópicas de país que perdiam vitalidade à medida que crescíamos para encarar o desafio realista da redemocratização, nossa geração desencantada foi uma ponte entre duas margens distantes.
De um lado ficava o Brasil que amava se ver como um país de cultura exuberante e generosa, portadora da promessa de uma nova sociabilidade, resultado de todas as misturas; do outro, uma terra cortada por rachaduras fundas, consciente de ser uma das mais desiguais do mundo, fértil em ódio e intolerância.
Se aquele país a pariu em berço esplêndido, no seio da realeza dos bambas, cabe a este, o crispado, testemunhar o apogeu da Nanda – como não só os amigos a chamam, com a intimidade de quem a viu perder bochechas desde a adolescente “Inocência”, de 1983.
Agora este país ideologicamente partido ao meio vê Fernanda Torres apontar, com sua descomunal Eunice Paiva, nada menos que um caminho de reconciliação anímica.
Se soubermos aproveitá-lo, continuaremos a divergir politicamente, claro, mas um lado não mais exaltará a tortura como política de Estado e os torturadores, gente desprezível, como heróis.
Trata-se do mesmo lado que vive louvando a família e que agora se depara com o mal demoníaco feito por sua amada ditadura à família daquela mulher – que, coisa espantosa, não se quebra. Pelo contrário, chega a queimar a tela com uma grandeza que há muito não se via na arte brasileira.
Que isso aconteça quando a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro faz dois anos, com Braga Netto na cadeia e a investigação ainda rolando, é um milagre. À beira do novo governo Trump, tem jeito de farol para a humanidade.
Eis no que dá quando a gente deixa a extrema direita se criar, diz Nanda. Em termos culturais, os milhões de brasileiros que se comoveram com “Ainda estou aqui” são um fenômeno de escala geológica.
Vale lembrar que antes do mirante Eunice Paiva a estrada passou por uma também inédita Palma de Ouro em Cannes aos 20 anos, uma Alex de “Terra Estrangeira”, uma Vani, uma Fátima e dois romances de primeira – “Fim” e “A Glória e seu Cortejo de Horrores”.
Sem falar na montanha de crônicas, nos memes perfeitos e no senso de humor mordaz, inteligentíssimo – tragicômico, palavra que ela acredita definir nosso país –, no qual se detecta o DNA artístico de Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, presentes também em sua biografia.
Papo reto, Brasil. A Nanda é nossa melhor esperança.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.