A reforma tributária está longe de ser unanimidade, mas tem ao menos um grande mérito, na visão de boa parte dos especialistas: o fim do PIS e da Cofins a partir de 2027. Essa dupla protagoniza grande parte do contencioso tributário administrativo e judicial do país, com regimes específicos de arrecadação e um emaranhado de regras que já somaram mais de 1,2 mil páginas.
PIS e Cofins fazem parte da cesta de tributos federais que será substituída pela Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Em outras palavras: o brasileiro continuará pagando o imposto de alguma forma, mas espera-se que a nova cobrança seja mais transparente e compreensível, reduzindo o litígio e o gasto das empresas no cumprimento de suas obrigações tributárias.
A Cofins tem a trajetória mais controversa, uma história que remonta a 25 de maio de 1982, quando o então presidente João Figueiredo anunciou a criação de um novo tributo da noite para o dia – e com vigência imediata – por meio do Decreto-lei 1.940.
A taxação foi criada com o nome de Fundo de Investimento Social (Finsocial), com alíquota de 0,5% sobre a receita bruta de todas as empresas, e tinha o objetivo de custear um amplo programa social com ações nas áreas de educação, saúde, alimentação, habitação popular e amparo ao pequeno agricultor. O fundo seria gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que na ocasião ganhou o “S” de Social e se tornou o BNDES.
Pela forma como foi criado, uma completa surpresa à época, e de maneira autoritária, sem discussão no Congresso, o Finsocial foi apelidado pelos críticos de “imposto Malvinas”, em alusão à investida da Argentina nas ilhas próximas ao seu território, controladas pela Inglaterra.
Uma coluna de notas políticas do Jornal do Brasil, reproduzida em vários veículos, dizia: “É o imposto Malvinas. Invade o capital privado na marra”. Outra nota comparava a taxa de 0,5% ao míssil Exocet, também usado na guerra no Atlântico Sul: “É disparada de longe e de surpresa e indene [imune] aos radares da economia e quando atinge o alvo (ou empresas) faz os maiores estragos”.
No discurso à nação em 25 de maio de 1982, Figueiredo defendeu o fundo para “proporcionar vida digna aos brasileiros”, por meio da “justiça contributiva, que envolve prestações de todos, com a justiça distributiva, pela qual o produto se divide entre os que necessitam”.
À época, o Brasil vivia um período de recessão, com fatores externos e internos. O próprio presidente reconheceu o risco de o Finsocial pressionar a inflação. “Sei também, entretanto, que posso contar, para amenizá-la, com a ajuda e a solidariedade das forças da produção e do comércio. Confio, igualmente, na compreensão altruísta dos consumidores”, declarou em transmissão nacional em cadeia de rádio e televisão.
As críticas, porém, não foram poucas. Três dias depois, os jornais traziam o contra-ataque do então ministro do Planejamento, Delfim Netto, aos empresários: “Desde quando a empresa tem prejuízo com a taxação? A empresa vai é transferir isso para o consumidor”. Acrescentou: “Faz três anos pelo menos que eles vivem exigindo do governo um programa social. Pois bem, o governo fez. E eles queriam que o governo tirasse os recursos de onde?”.
No Diário da Câmara dos Deputados há vários pronunciamentos pedindo a cabeça do ministro por tais declarações. O Judiciário também foi acionado, já que o novo tributo não respeitava o princípio da anualidade, segundo o qual novos tributos só podem ser cobrados no ano posterior à criação.
Mas Delfim Netto não se deixou atingir: liderou o entusiasmo com a contribuição e a defendia como salvação para resolver os problemas sociais do país. Dias depois os jornais traziam uma espécie de profecia do ministro: “Daqui até o final dos tempos a contribuição do Finsocial será parte integrante do sistema tributário brasileiro”. Ele morreu em agosto de 2024, quando o Congresso discutia a regulamentação da reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional 132, de 2023.
Para grande parte das empresas e tributaristas, o Finsocial representou o “final dos tempos” pela complexidade da legislação. Foram diversas alterações nas regras, sempre antecedidas da expectativa do setor produtivo por sua extinção.
A Constituição Federal de 1988 confirmou a cobrança de contribuições sociais para custear a Previdência Social – no ano anterior o fundo já não era remetido ao BNDES para gestão de políticas públicas integradas, conforme estudo de 1987 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Quando surgiu, o fundo “fazia renascer a esperança de se trabalhar num modelo de política social integrada que supera-se a etapa de aglomerado de programas sociais desarticulados e meramente compensatórios”, dizia o documento. Nessa época surgiram vários conjuntos habitacionais, entre eles a Vila Finsocial, que ainda hoje é nome de bairro em Goiânia (GO). Logo o fundo perdeu seu caráter social e passou a integrar o caixa das despesas correntes.
Em 1991, o Congresso aprovou a Lei Complementar 70, que criou a Cofins em substituição ao Finsocial, com o objetivo de financiar a seguridade social. Mas a divergência sobre a contribuição gerou tantos conflitos que contribuíram para a criação do instrumento jurídico Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). A ADC 1/1993 confirmou a norma regulamentadora da Cofins. Entretanto, os litígios permaneceram, bem como sucessivas atualizações das suas regras.
A Cofins/Finsocial também serviu como uma “vacina” do empresariado contra novos tributos e estava ainda fresca na memória dos empresários nas discussões sobre a CPMF, que vigorou de 1997 a 2007 com o intuito de ser provisória e financiar ações na área de saúde. Houve uma cobrança temporária em 1994, com o nome de IPMF, e depois ela retornou, após sucessivas prorrogações e promessas de encerrá-la.
“Como imposto definitivo [CPMF], ele será uma catástrofe, pois já existe o histórico que mostra a tendência irreversível de transformar alíquotas tributárias irrisórias em grandes mordidas fiscais. É o caso do Finsocial, criado na década de 80, que começou com 0,5% e quadruplicou em menos de 15 anos”, escreveu em setembro de 1997 o então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Carlos Eduardo Moreira Ferreira, em artigo na Folha de S.Paulo.
Compilado da legislação dos dois tributos ocupou 1.246 páginas
O PIS – Programa de Integração Social – foi criado em 1970, junto com o Pasep, programa semelhante voltado aos funcionários públicos. O objetivo era distribuir parte do faturamento das empresas, públicas ou privadas, aos trabalhadores. Foram modificados ao longo dos anos e atualmente a arrecadação é destinada ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e ao pagamento de abonos anuais.
A origem do PIS não teve muitas controvérsias, até porque seguiu um rito legislativo. Foi enviado em agosto de 1970 pelo então presidente Emílio Médici ao Congresso, onde a oposição se limitou a apresentar emendas, já que o projeto era considerado benéfico aos trabalhadores. Foi aprovado por unanimidade em apenas um mês.
As controvérsias surgiram depois. O PIS já incidia sobre o faturamento das empresas quando o Finsocial foi criado, com a mesma base de cálculo. Entretanto, como tinham destinação distinta, persistiram no ordenamento jurídico por todas essas décadas.
Com regras próprias e diferentes alíquotas, o PIS/Cofins viraram uma dupla quase inseparável. Em 2012, a Receita Federal publicou a “Coletânea da Legislação” das duas contribuições, com um total de 1.246 páginas, o que virou motivo de chacota entre tributaristas e parlamentares. Atualmente está disponível no site do órgão a Instrução Normativa n.º 2.121/22, com um compilado de regras do PIS/Cofins de 316 páginas.
PIS e Cofins lideram ranking dos litígios tributários
Independentemente da extensão da legislação, o PIS e a Cofins são responsáveis por grande parte do litígio tributário no país. O estudo “Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo”, produzido pela Receita Federal e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2022, mostra que da ótica do processo administrativo fiscal, considerando-se os tributos que ensejam litígios nessa esfera, em primeiro lugar aparecem PIS e Cofins com 20,5% dos casos, seguido do Imposto de Renda de Pessoa Física 14,6%.
Outro estudo, o Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, feito pelo Insper para o CNJ também em 2022, aponta que dentre os tributos ou temas tributários federais que mais demandaram consultas fiscais (um índice que expressa a dúvida dos contribuintes na interpretação da legislação), a Cofins aparece em primeiro lugar, com 12,2% do total.
A consultora tributária Maria Carolina Gontijo é uma das entusiastas do fim do PIS/Cofins. Em vídeo divulgado em suas redes sociais, ela destaca que ninguém compreende a legislação e que dúvidas persistem entre pequenas empresas e grandes players do mercado.
Um dos temas que ainda aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) é se o Imposto sobre Serviços (ISS) deve ou não ser incluído na base de cálculo do PIS/Cofins. Tema semelhante foi julgado na chamada “tese do século”, que tratava sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins.
“Se eventualmente tem decisão judicial, permitindo a recuperação de valores pagos a mais, a empresa não devolve para o consumidor. Foi cobrado sobre o consumo, no preço final, o consumidor pagou; mas quem recebe de volta o que pagou a mais é a empresa. Nesse cenário de insegurança jurídica, o penalizado é sempre o consumidor”, afirmou a consultora tributária à Gazeta do Povo.
Para ela, a reforma tributária e a unificação do PIS/Cofins e outros tributos federais em apenas uma contribuição, a CBS, vai gerar transparência, simplificação e queda nas despesas com litígios judiciais.
Fontes: Discurso presidencial 25 de maio de 1982; Diários da Câmara dos Deputados e arquivos Jornal do Brasil e Jornal do Commercio de agosto e setembro de 1970 e de maio e junho de 1982; Arquivo Folha de S. Paulo; “Cofins, uma breve história”, de José Antonio Schöntag/FGV Projetos, 2015; “Finsocial: Análise Sumária do Funcionamento 1982/1986, Mozart de Abreu e Lima, Lúcia Pontes de Miranda Baptista e Klécius Ferreira Muniz, Ipea/1987; “Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo”, BID/Receita Federal, 2022; Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, Insper/CNJ, 2022; “Da esperança ao triunfo: o estudo da formação de uma nova classe trabalhadora de Goiânia”, de Renatha Cândida da Cruz e João Batista de Deus, 2017.