A voz é um dos pilares da identidade. Para muitas pessoas trans, ajustar o tom vocal ao gênero com o qual se identificam é parte importante do processo de transição. Procedimentos como a glotoplastia e a tireoplastia tipo 3 têm transformado a vida de mulheres e homens trans, promovendo maior qualidade de vida, integração social e satisfação pessoal.
“A glotoplastia é indicada para mulheres trans. O procedimento, realizado por via intraoral, encurta a área de vibração das pregas vocais, o que produz uma voz mais aguda e feminina”, explica o médico otorrinolaringologista Guilherme Catani, pioneiro nas cirurgias de redesignação vocal no Brasil. Ele ressalta que o método não deixa cicatrizes externas, dura cerca de 90 minutos e exige repouso vocal de aproximadamente 15 dias.
Já a tireoplastia tipo 3, indicada para homens trans, modifica as cartilagens da laringe por meio de uma pequena incisão no pescoço. A cirurgia torna a voz mais grave, especialmente em pacientes que não obtiveram resultados satisfatórios apenas com a terapia hormonal. “São abordagens diferentes: para agudizar a voz, a glotoplastia é a mais eficaz; para torná-la mais grave, optamos pela tireoplastia tipo 3”, diz Catani.
A terapia hormonal também pode influenciar a voz, mas seus efeitos variam. Em mulheres trans, as pregas vocais já expostas à testosterona durante a puberdade não respondem ao estrogênio e aos bloqueadores de testosterona. Nesses casos, a cirurgia é mais eficaz. Para homens trans, a testosterona promove alterações significativas no tom vocal.
Victoria Gropen, 22, viveu a angústia de uma voz que não correspondia à sua identidade. “Ao longo da adolescência fui ficando muda, não queria que as pessoas ouvissem a voz de um homem porque eu sou uma mulher. Fiquei muda de 2018 a 2022”, relata. Ela se comunicava através de mensagens pelo celular. “Muitas vezes eu conversava e pedia informações apenas por texto, escrevia ‘oi, sou muda, pode me ajudar?’”.
Como engenheira de áudio, Victoria encontrava muitos desafios na profissão e na vida pessoal, até realizar a glotoplastia no IPO (Hospital Paranaense de Otorrinolaringologia), em Curitiba (PR), um centro de referência para o procedimento na América Latina. No último ano, a instituição realizou mais de 130 procedimentos semelhantes. “Hoje, posso conversar com as pessoas. Isso mudou minha vida. Se não fosse a cirurgia, eu estaria muda até hoje”, relata.
A adaptação da voz à identidade de gênero é um passo importante para muitas mulheres trans, pois ajuda a reduzir a sensação de desconforto ou angústia causada pela diferença entre identidade de gênero, sexo atribuído ao nascimento ou características físicas relacionadas ao sexo —condição conhecida como disforia de gênero.
“A melhora na autoestima é bastante significativa. As mulheres se sentem mais confiantes para falar em público, atender telefonemas ou enviar áudios, coisas que antes evitavam. Recebo muitos relatos positivos no consultório”, afirma Catani, autor do livro Guia de Readequação Vocal para Pessoas Trans.
Além das cirurgias, o acompanhamento fonoaudiológico é importante para alcançar resultados satisfatórios. A terapia ajuda a ajustar o tom, a entonação e os padrões de comunicação não verbal. “A fonoterapia é de máxima importância para que a pessoa aprenda a usar a nova voz de uma forma funcional e natural”, explica Catani.
O custo da cirurgia varia de acordo com cada tipo e dificuldade do caso, em torno de R$ 15 a R$ 20 mil.
Procedimento no SUS
O procedimento pode ser realizado, inclusive, pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Este ano, Ceará e Bahia realizam as primeiras cirurgias de feminização da voz pela rede pública.
O processo começa na atenção básica. A pessoa interessada deve procurar uma unidade de saúde e solicitar encaminhamento a um ambulatório especializado. Após passar por avaliação e acompanhamento fonoaudiológico, o paciente será encaminhado para a cirurgia caso a terapia não seja suficiente para a mudança desejada.
Segundo o Ministério da Saúde, 21 ambulatórios e hospitais estão habilitados para atender a população trans. Apenas cinco hospitais, todos universitários, realizam as cirurgias de redesignação vocal no país. “É preciso ampliar essa rede. O desafio é formar equipes multidisciplinares, que incluam endocrinologistas, psicólogos, psiquiatras, otorrinolaringologistas e fonoaudiólogos”, diz o médico Agrício Crespo, presidente do Instituto de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Apesar das limitações, Rodrigo Dornelas, médico no ambulatório Transidentidade da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), vê avanços. “O SUS tem incorporado questões de saúde das pessoas trans, mas ainda não é suficiente e existem barreiras burocráticas que precisam ser superadas”, afirma.
Segundo ele, o ambulatório da UERJ tem uma fila de espera de mil pessoas que aguardam atendimento integrado, desde a inauguração da unidade já foram realizados 400 atendimentos, o que demonstra a procura por serviços semelhantes.
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