Embora ninguém pudesse afirmar de antemão que a gata Harris estava morta dentro da caixa, a notícia de sua derrota foi recebida com surpreendente conformismo. A que se deve tal reação, ou a falta dela? A reeleição de Trump implicou uma escolha que não foi feita às cegas, que não se justifica apenas pelas fake news e na qual a narrativa de outsider não existe mais. Os americanos votaram e o fizeram sabendo qual produto estavam comprando. Como bem resumiu Oliver Stuenkel, haveria quatro “is” envolvidos nessa escolha: inflação, imigração, instabilidade global e insegurança masculina. Além dos bilhões de dólares investidos na campanha, claro.
Mais do que se debruçar sobre a infindável —e imprescindível— investigação das razões pelas quais essa figura execrável foi reeleita para governar o país mais poderoso da atualidade, há que se pensar também sobre a desrazão, tema crucial da psicanálise. Embora hoje tenhamos que conviver com o ultraje de ver associado ao nome da psicanálise as palavras “positiva”, “evangélica”, “de direita”, “certificada” ou ainda “certificada pelo MEC”, nosso trabalho é de outra ordem.
O analista convive com uma rotina nada glamourosa de escutar a repetição da queixa do paciente, por vezes, ao longo de anos. Alguns sintomas podem até ceder, mas a mudança da posição do sujeito diante da vida, que o leva a um sofrimento insistente, requer um trabalho mais radical. Não raro, o paciente troca de trabalho, sexo, marido/esposa ou casa sem que isso o faça sair da posição que o mantém numa existência miserável.
O prazer inconfesso que se obtém com a repetição de certos padrões de comportamento está recalcado sob a queixa. Daí a importância de ajudá-lo a reconhecer sua parte naquilo do qual se queixa. O analista não tem a pretensão de modificar a escolha do paciente, mas de fazê-lo assumir sobre que bases se dá essa escolha. A atitude aqui é ética, de responsabilização, e não moral, de dever a ser cumprido.
A escolha por Trump —o exterminador do futuro das mulheres, dos negros, dos pobres e, por fim, do próprio planeta— se revela como renovação na aposta na objetificação do outro, a quem, a depender da posição relativa na escala social, poderemos continuar explorando. Trata-se, enfim, da renovação da aposta capitalista em sua versão turbinada, neoliberal. Algo como: sofro, mas não me privo de fazer o outro sofrer, alucinando a possibilidade de um dia estar na posição mais alta da hierarquia social. Aquela na qual roubar, abusar, matar não seriam atos passíveis de responsabilização. Lembremos da pilha de condenações ligadas ao candidato em questão.
Embora a guilhotina tenha feito seu papel, nunca superamos inteiramente o sonho monarquista, no qual o presidente-rei paira incólume sobre os pobres mortais. Como acabar com esse jogo perverso se não conseguimos abrir mão da esperança de um dia ser nossa vez de brincar de todo-poderoso?
Psicanalistas se orientam pelo que repete incessantemente na clínica porque é a partir da identificação da repetição que se pode localizar a fantasia inconsciente que nos move. No caso de Trump, a fantasia é de delírio de grandeza e de gozar impunemente. Temos nosso exemplar no Brasil, que não deveria sequer voltar às capas desse jornal.
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