A ressurgente medicina psicodélica se viu prostrada com o revés de agosto, nos Estados Unidos, da recusa pela agência de fármacos FDA a licenciar psicoterapia assistida por MDMA (princípio ativo do ecstasy) para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A magnitude do choque quase fez passar despercebida notícia mais positiva vinda da Holanda.
O governo holandês recebeu uma recomendação inequívoca sobre o tratamento inovador: “Tendo em vista as evidências científicas convincentes sobre segurança e eficácia da terapia assistida por MDMA e o sofrimento considerável entre os pacientes com TEPT, a Comissão de Estado recomenda que a implementação do TA-MDMA para o tratamento do TEPT seja facilitada o mais rápido possível”.
Tal comissão de seis médicos e juristas especializados em drogas havia sido criada em março de 2023 para orientar políticas públicas sobre MDMA, tanto sobre uso ilegal quanto seu potencial terapêutico. Seu parecer veio em junho de 2024, nas 236 páginas do relatório “MDMA: Além do Ecstasy”.
A Holanda ficou célebre décadas atrás pela liberalidade com maconha. Admite também o uso da psilocibina na forma de “trufas”, massas de micélio de fungos Psilocybe que crescem debaixo do solo e não foram incluídas na proibição dos cogumelos ditos “mágicos”.
Meia centena de estabelecimentos oferece retiros e cerimônias com essas trufas, de maneira legal. Os preços variam de 700 a 1.800 euros (R$ 4.500 a R$ 11.500).
Além disso, o uso de ecstasy é difundido: 550 mil holandeses ingeriram a droga pelo menos uma vez em 2022; um em cada dez adultos já teve contato com a substância. O país é também destacado produtor e exportador dos comprimidos ilegais, abastecendo casas noturnas, festas e raves.
Por outro lado, a Holanda conta com 400 mil pessoas diagnosticadas com TEPT, dos quais 90 mil se encontram em tratamento, com resultados precários. Dada a copiosa divulgação de estudos científicos com bons resultados contra o transtorno, difunde-se o interesse de pacientes pela alternativa promissora.
“A Comissão de Estado observa que esse crescente interesse na TA-MDMA está gerando desenvolvimentos indesejáveis, como o uso de ecstasy [comprimidos ilegais] para fins terapêuticos sem supervisão adequada e um número crescente de fornecedores comerciais de terapias inspiradas em TA-MDMA regular, muitos deles incompetentes”, alerta o relatório.
O comitê ouviu especialistas externos, como o Grupo de Trabalho Uso Terapêutico de Psicodélicos. “A oferta de provedores comerciais de terapia psicodélica fora do sistema regular de saúde está aumentando e […] investidores e startups estão se concentrando em usar (ou patentear) novos psicodélicos”, destacou o grupo.
“Interesses que não sejam os do paciente podem facilmente adquirir precedência nessa matéria. Devemos garantir que os pacientes não se tornem vítimas de implementação e uso excessivamente rápidos ou mal pensados.”
Para evitar o risco, a comissão recomendou ao governo, na ausência de registro formal da droga como medicamento, torná-la disponível para um grupo selecionado de pacientes em estudo científico naturalista –ou seja, não num teste clínico duplo cego– de vários anos.
O propósito não seria regulamentar de cara o tratamento, como no caso da tentativa fracassada nos EUA, mas estabelecer exequibilidade e custo-benefício na Holanda. O relatório antecipa, porém, que faltarão profissionais capacitados para atender a demanda reprimida por psicoterapia psicodélica e que o governo precisa adotar medidas para resolver a deficiência.
A discrepância entre recomendações nos EUA e na Holanda tem raízes e implicações mais profundas, considera o biomédico brasileiro Eduardo Schenberg. Em artigo no repositório aberto PsyArXiv, portanto sem passar pelo crivo de pareceristas como ocorre em periódicos científicos, ele diagnostica que a diferença decorre de visões mais e menos estreitas sobre o que seja evidência aceitável em medicina.
Sob o título “Medicina baseada em evidências é inadequada para desenvolver terapias psicodélicas baseadas em evidências”, Schenberg analisa que a negativa da FDA está fundada na supervalorização de ensaios clínicos aleatorizados controlados por placebo (RCTs, como são conhecidos em inglês), em detrimento de outros tipos de evidência, como mecanismos de funcionamento bem-estabelecidos.
Esse seria o caso de terapias psicodélicas, parece ter considerado a comissão holandesa. Ao contrário dos especialistas da FDA, os europeus não tropeçaram nas dificuldades de manter o cegamento com psicodélicos, cujo efeito é óbvio, ou de parametrizar a prática psicoterápica para discernir sua contribuição em relação à da droga, isoladamente.
Tendo em vista mais as necessidades de pacientes hoje desatendidos do que o cânone farmacológico, a comissão holandesa se mostrou mais aberta ao que há de incomum nos tratamentos psicodélicos: a droga como facilitadora da psicoterapia, sua eficácia conjunta numa intervenção que não pode ser desmembrada em duas variáveis independentes.
Schenberg cita no texto a avaliação do episódio na FDA por Thomas Insel, psiquiatra que dirigiu o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA de 2002 a 2015: “Pessoas com doenças mentais graves precisam de um processo regulatório que aborde essa inovação como elemento constitutivo [feature], não como defeito [bug]”.
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