O relatório de impacto ambiental da usina hidrelétrica Bem Querer, em Roraima, afirma que o empreendimento vai alterar as rotas migratórias dos peixes, impedir a migração em alguns casos, provocar diminuição de espécies comerciais na área do reservatório —a partir da inundação de locais importantes à reprodução— e modificar a atividade pesqueira na região.
A mudança no deslocamento natural e nas rotas migratórias dos peixes é classificada como de alta magnitude no documento, protocolado no último dia 25 no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para obtenção de licença prévia.
“As rotas migratórias serão alteradas pelo barramento. Também haverá mudança nos tipos de peixes do reservatório, por causa da alteração na qualidade e fluxo da água”, cita o documento, elaborado por firma contratada pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética), vinculada ao Ministério de Minas e Energia. A EPE é a responsável, no governo federal, pelo projeto da usina Bem Querer.
“A implantação do sistema de transposição de peixes pode diminuir alguns impactos, mas outros continuarão com gravidade”, diz o relatório de impacto ambiental.
Em nota, a EPE afirmou que a previsão de um mecanismo de transposição de peixes busca mitigar os efeitos do barramento sobre a migração de espécies.
Entre os mecanismos citados pela empresa estão escada, elevador, canais e transposição manual. “Para manter a atividade pesqueira na região, o EIA/Rima indica ser essencial desenvolver estratégias em conjunto com colônias, sindicatos e associações da pesca, que contemplem mecanismos de gestão dos recursos pesqueiros e promovam a melhoria da qualidade de vida dos pescadores da região”, disse.
Reportagem da Folha publicada no último dia 5 mostrou que a empresa pública avançou na execução do projeto da hidrelétrica e protocolou no Ibama o estudo e o relatório de impacto ambiental, conhecidos pela sigla EIA/Rima.
O empreendimento impacta a Terra Indígena Yanomami e outros nove territórios tradicionais em Roraima. Mesmo assim, a EPE deixou de elaborar o ECI (estudo de componente indígena), que detalha os impactos às comunidades tradicionais. Esse estudo é obrigatório em casos de grandes empreendimentos como uma hidrelétrica.
Os relatórios finalizados e apresentados ao Ibama já apontam impactos aos yanomamis e aos outros povos indígenas na vizinhança do reservatório planejado no rio Branco. O reservatório ficaria a 24 km da terra yanomami. O traçado da linha de transmissão, a 20 km.
“Para as terras indígenas, independentemente da situação das etnias, atribuiu-se à proximidade com o reservatório o maior grau de sensibilidade, em razão da pressão sobre essas terras decorrentes do empreendimento e da chegada de migrantes para as obras”, diz o EIA. “Todas as lideranças indígenas entrevistadas foram contrárias à construção da usina hidrelétrica.”
O Ibama afirmou que pedirá o ECI para análise sobre a aceitação dos estudos apresentados.
Em fevereiro de 2023, poucos dias após a declaração de emergência em saúde pública na terra yanomami, em razão da crise humanitária vivenciada pelos indígenas, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) enviou ofício ao MME em que disse não ser possível a realização de reuniões sobre a elaboração do ECI junto às “comunidades indígenas potencialmente afetadas no território yanomami”.
Sobre a ausência do estudo de componente indígena, a EPE disse ser necessária autorização da Funai e das comunidades para ingresso nos territórios.
“Sem a autorização para início dos estudos, o diálogo com as comunidades fica comprometido, assim como o mapeamento adequado dos impactos e a proposição de medidas de mitigação e compensação”, afirmou.
Os estudos já feitos e apresentados detalham impactos a pescadores da região. Conforme os documentos, cerca de 3.000 pessoas vivem em comunidades ribeirinhas no baixo rio Branco. Em Roraima, há 7.000 pescadores, afirmam os relatórios. Na área diretamente afetada, houve a identificação de 1.432 pescadores, e o número é considerado subestimado.
“O barramento da hidrelétrica cria uma barreira que impede a migração de peixes adultos rio acima para desovar, enquanto as águas lentas do reservatório limitam o movimento das larvas e dos peixes jovens rio abaixo”, afirma o relatório de impacto ambiental. “Isso pode afetar especialmente as espécies migratórias.”
O documento diz ainda que a pesca no rio Branco já está prejudicada em razão de uma pequena quantidade de peixes e do garimpo, que contamina os rios da região. Na terra yanomami, ao fim do governo Jair Bolsonaro (PL), havia cerca de 20 mil invasores dedicados ao garimpo ilegal de ouro. O governo Lula (PT) faz uma operação, desde fevereiro de 2023, para expulsão dos garimpeiros.
“A implantação da usina Bem Querer modificará os locais e hábitos de pesca com as mudanças na vida aquática, afetando os pontos de desembarque pesqueira em Boa Vista, Caracaraí e Mucajaí”, diz o relatório.
“Espera-se que ocorra diminuição dos peixes migradores na área do reservatório e aumento dos peixes não migradores, ocasionando mudanças nas estratégias de pesca.”
Conforme o documento, há 386 espécies de peixes na região. Coletas foram feitas para elaboração do estudo de impacto ambiental, que mapeou 45 espécies classificadas como migradoras de média distância.
Um sistema de transposição de peixes deve ser implantado na usina, como já ocorre em outros empreendimentos do tipo. Entre as sugestões feitas estão a instalação de grades anticardumes e medidas que garantam o trânsito de espécies migradoras, como canais de passagem.
“Uma vez que sistemas de transposição de peixes são considerados pouco eficientes para a maior parte das usinas na América do Sul, é imprescindível que estudos específicos e adicionais sejam desenvolvidos para se avaliar a viabilidade desses sistemas para a hidrelétrica Bem Querer”, afirma um dos relatórios apresentados ao Ibama.
Grandes empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, como a usina de Belo Monte, no rio Xingu, e a usina Santo Antônio, no rio Madeira, levaram a uma diminuição da oferta de peixes, em regiões onde a atividade pesqueira é uma das principais fontes de renda das comunidades. Mais de 6.000 pescadores pediram reparação em razão dos impactos causados por Belo Monte.
A hidrelétrica Bem Querer está prevista para operar no rio Branco a partir da formação de um reservatório de 640 km2, em áreas referentes a seis municípios de Roraima.
“O aproveitamento hidrelétrico do rio Branco, em especial do trecho das corredeiras do Bem Querer, é de grande importância para o estado de Roraima e para o Brasil, frente a crescente demanda de energia elétrica do mercado e a integração do estado ao SIN (Sistema Interligado Nacional)”, afirma o estudo apresentado pela EPE. A capacidade de produção é de 650 megawatts.