Desde outubro de 2023, o mal-estar e os traumas provocados pelo ataque terrorista do Hamas e pela ofensiva de Israel na Faixa de Gaza tomaram parte da comunidade acadêmica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Em 7 de outubro do ano passado, o Hamas matou cerca de 1.200 pessoas e sequestrou outras 251 em território israelense. O governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu revidou com ataques a Gaza que deixaram mais de 45 mil mortos, segundo o Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas. A ação foi denunciada ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por suspeita de genocídio.
A guerra aumentou a tensão sobre o tema no campus. De um lado, certas manifestações de apoio ao povo palestino e críticas aos bombardeios de Israel foram tomadas como antissemitismo, isto é, como discursos de ódio aos judeus.
De outro lado, estudantes que se declararam sionistas, ou seja, que defendem o nacionalismo judeu e seu direito a um Estado, foram apontados como apoiadores dos ataques a Gaza.
Essas pressões levaram à abertura de uma sindicância pela mantenedora da PUC-SP, a Fundação São Paulo (Fundasp), para a apuração de denúncias de suposto antissemitismo feitas contra estudantes e dois professores de relações internacionais, Reginaldo Nasser e Bruno Huberman. Eles foram convocados a prestar esclarecimentos no mês passado. As denúncias são investigadas sob sigilo.
Nasser, que há 35 anos se dedica a estudos de conflitos internacionais e da geopolítica do Oriente Médio, relata ter sido questionado pela Fundasp a respeito de postagens sobre a guerra Israel-Hamas feitas no perfil do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais (Geci), que ele coordena. “Esse fato de chamar para prestar esclarecimentos por conta de um grupo de pesquisa registrado e que realiza trabalhos públicos foi algo inédito. É preocupante”, disse ele à Folha.
Para Nasser, a denúncia é fruto de pressões que “organizações israelenses estão fazendo em instituições no mundo inteiro”. “Um dos objetivos é não discutir os fatos que ocorrem no conflito”, afirma.
Huberman, que é judeu, diz que o grupo de estudos, do qual é vice-coordenador, tem atraído interesse de mais estudantes desde o início da guerra e que não se pode reduzir o judaísmo, que é muito diverso, a Israel.
“Apoiamos a causa palestina, sem apoiar nenhum grupo específico. Agora, estamos passíveis de sofrer algum tipo de punição”, afirma o docente. “Estamos sendo censurados, de certa forma. Na circunstância que vivemos, existe um esforço por parte de setores vinculados ao Estado de Israel que desejam que críticas sejam interpretadas como antissemitismo”, avalia Huberman.
Procurada, a Fundasp disse que só vai se manifestar quando as sindicâncias forem concluídas.
A convocação dos docentes gerou reações. Em carta enviada à Fundasp, o relator especial de Direitos Humanos da ONU, Paulo Sérgio Pinheiro, escreveu que é demagogia da fundação acatar denúncias que “confundem análise e pesquisa acadêmica do sistema de apartheid israelense e das práticas da política sionista do Estado de Israel com antissemitismo”.
Pinheiro é um dos 235 docentes da USP signatários de uma carta de protesto contra um processo sigiloso que ocorre na Universidade de São Paulo contra quatro alunos investigados por suposto antissemitismo. O resultado do caso deve sair nas próximas semanas.
Na PUC-SP, as denúncias de suposto antissemitismo agora sob investigação foram reunidas pelo Coletivo de Estudantes Judeus da universidade e levadas à reitoria, sem sucesso. Elas chegaram à Fundasp por meio da Federação Israelita de São Paulo (Fisesp).
Daniel Kignel, diretor jurídico da Fisesp, conta ter sido procurado por alunos judeus da PUC com relatos de “discursos de ódio e manifestações que diziam que o sionismo tinha de ser varrido da universidade”.
“A problemática desses alunos nunca foi a de críticas ao governo israelense, a Binyamin Netanyahu ou às mortes em Gaza, que são uma tragédia que não se pode ignorar. Mas, sim, um discurso que tenta colocar o sionismo como uma doutrina racista e colonial e extirpar da universidade alunos que acreditam que Israel tem o direito de existir”, afirma Kignel.
De acordo com a Confederação Israelita do Brasil (Conib), entre outubro de 2023 e outubro de 2024, houve um aumento de 500% no número de denúncias de antissemitismo recebidas pela entidade em relação ao mesmo período anterior.
Os casos de suposto antissemitismo da PUC teriam começado já no dia 8 de outubro de 2023, quando o aluno Luis Costa, 22, da Faculdade de Ciências Sociais, diz ter se manifestado em suas redes sociais em apoio a Israel e seu povo, o que o tornou alvo de notas de repúdio de grupos de estudantes da universidade.
“Passei a receber xingamentos e ameaças. Fiquei com medo e deixei de ir à PUC por uma semana porque não me sentia seguro”, afirma ele, que diz ter encontrado um ambiente hostil na volta ao campus. “As pessoas cuspiam no chão quando eu passava. Parecia que eu tinha cometido um crime.”
Em maio deste ano, o aluno de serviço social Luiggi Lellis, 20, foi expulso do centro acadêmico do seu curso. “Era bem recebido até que aconteceu um novo ataque a Israel, e eu me posicionei como um sionista socialista: a favor da paz, pelo fim da ocupação de áreas da Cisjordânia e pela criação de dois estados. Fui expulso do CA por unanimidade e comecei a ter problemas na universidade, com pessoas me chamando de genocida”, afirma ele.
Em agosto, uma assembleia estudantil teve como uma das pautas “contra os avanços sionistas na PUC-SP”. Costa diz que alguns participantes intimidaram alunos que eles achavam serem sionistas.
Lucca Bueno, 19, estudante de serviço social e membro do coletivo Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino (ESPP) e da União da Juventude Comunista (UJC), entidade que organizou a assembleia, nega intimidações a alunos judeus e afirma que estudantes árabe-palestinos vêm sofrendo ameaças no campus.
“Eu sou judeu mas recebi ameaças de morte de outros alunos por me posicionar a favor da causa palestina”, afirma. O caso foi levado à pró-reitoria de Cultura de Relações Comunitárias.
“Acho curioso que a fundação e a reitoria tenham atuado tão rapidamente para notificar esses dois professores enquanto não aconteceu nada com as denúncias de racismo e de transfobia que fizemos contra outros docentes há muito tempo”, questiona Bueno.
Procurada, a nova reitoria da PUC-SP, que tomou posse depois desses eventos, afirmou que “está implantando um Núcleo de Mediação e Justiça Restaurativa, que, dentre outras finalidades, deve se ocupar de casos como esses”.