O tempo é rei, como canta Gilberto Gil. No ano 2000, uma reportagem sobre ambiente virou rara manchete da Folha, naquela quadra em que a crise do clima ainda parecia cisma de bicho-grilo, e dizia: “Obras federais ameaçam florestas”.
A chamada de capa alertava: “A recuperação e pavimentação de quatro estradas do programa federal de obras Avança Brasil ameaça condenar à destruição até 180 mil km2 de florestas, uma área equivalente a duas vezes a de Portugal”.
O estudo obtido pela Folha, um furo de reportagem, era obra de três ONGs, duas brasileiras (Ipam e ISA) e outra norte-americana (WHRC). Avança Brasil era o plano desenvolvimentista do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que, apesar do estilo cosmopolita e civilizado, não recebeu bem a previsão.
Dez meses depois, a pesquisa baseada em extrapolações sobre o desmatamento induzido por rodovias encorpou as projeções e saiu em 11 de janeiro num periódico científico de prestígio, Nature. A reportagem da Folha destacava: “Estudo prevê 270 mil km2 de devastação“. Um imenso Portugal.
O prazo coberto pela estimativa abrangia de 20 a 30 anos. Uma consulta às taxas oficiais de desmatamento apuradas por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um quarto de século depois, revela que a turma das ONGs acertou em cheio, ou quase, para minha surpresa.
Ao longo de 24 anos, entre 2001 e 2024, a destruição de florestas na Amazônia Legal totalizou 277 mil km2, em números redondos. Sete mil quilômetros quadrados mais que a previsão dada na época como alarmista. Uma vergonhosa contribuição brasileira para agravar o aquecimento global (a biomassa da vegetação destruída vira CO2, principal gás do efeito estufa).
O caso voltou à mente com a leitura da entrevista que a colega Giuliana Miranda publicou dias atrás com o ecólogo norte-americano William Laurance. Seu título deflagrou o proverbial déjà-vu: “Estradas são a porta de entrada para destruição da amazônia, alerta pesquisador veterano da floresta”.
Duas semanas depois daquela manchete de 2000, Bill Laurance, como era conhecido, se veria no epicentro de uma crise política por causa de um estudo similar, que predizia perda adicional de 28% a 42% da amazônia até 2020 (o total está em quase 20%). Ele já morava havia cinco anos no Brasil, trabalhando no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa).
Sofreu ataque virulento em nota do Ministério da Ciência e Tecnologia, que assinalou ser o autor principal de novo estudo preocupante, agora na revista Science, um cientista vinculado ao Smithsonian Tropical Research Institute, “baseado no Panamá”. O comunicado dizia que o trabalho não contava com chancela institucional do Inpa.
O MCT caprichou na paranoia nacionalista: “É curioso que a divulgação dessa futurologia ecológica (…) ganhe expressão pública exatamente no momento em que se discutem teses polêmicas acerca do impacto nas mudanças globais do clima a partir das emissões dos países desenvolvidos e de sua responsabilidade com metas de redução da emissão de carbono”.
Houve até ameaça de expulsar Laurance do país. O mesmo país devastador que hospeda agora a COP30 numa amazônia com três Portugal a menos de floresta.
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