Na noite de Natal de 2024, uma barraca vermelha seca era o desejo compartilhado por oito pesquisadores, presos em meio a uma tempestade na Antártida.
Na ilha Mill, Filipe Gaudie Lindau, 37, e seus colegas viram o tempo fechar a porta para a possibilidade de retornar ao quebra-gelo que busca completar a maior circum-navegação antártica.
O Natal seria ali mesmo, compartilhado pelos oito em uma barraca para quatro, escutando os violentos ventos do lado de fora. Houve, pelo menos, uma espécie de brinde —um golezinho para cada um de uma bebida levada em alguma mochila—, tanto pela noite natalina quanto pela proteção que garantiria a sobrevivência apertada de todos.
A missão de Lindau, pesquisador UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), engenheiro químico de formação, com mestrado e doutorado em geologia, eram os testemunhos de gelo, com os quais é possível ter amostras de características passadas da atmosfera, poluição e da presença de microplásticos.
O Diário da Antártida desta semana conta a amostra que os pesquisadores tiveram do extremo tempo antártico.
O tempo aqui é curto. Temos até o fim de janeiro para chegar ao Brasil e isso faz com que estejamos no espírito de não perder tempo. Já tínhamos definido um local que seria interessante para a coleta dos testemunhos de gelo —o nosso objetivo. A ilha Mill, completamente formada de gelo, em formato de um domo. Estávamos a uns 500 metros de altitude.
Chegamos lá após um voo de uns 20 minutos no dia 24, ali pelas 18h. No momento em que chegamos o tempo estava excelente. Devia estar uma temperatura de -1°C ou -2°C, que é fantástica, é uma temperatura alta no contexto de verão antártico aqui na região costeira.
Começamos o trabalho de perfuração, de pegar as medidas básicas, o que dura em torno de 4 a 6 horas. O que fazemos é uma perfuração em certos pontos, em uma área propícia —locais que mantêm uma estratigrafia, o quer dizer que a neve que está soterrada ali é de um período anterior—, e coletamos um cilindro de dez metros de profundidade mais ou menos. Coletamos e armazenamos.
Estamos trabalhando com cinco locais em que vamos coletar informações a partir dos testemunhos. Teve locais onde a gente já coletou dois de dez metros de profundidade e locais onde coletamos só um de dez metros. E em todos coletamos a mais, [testemunhos] de três metros, que são exclusivamente para microplásticos. Filtramos esse testemunho de gelo totalmente, de metro em metro, em diferentes tamanhos de poro.
Essa etapa de filtração estamos usando para detectar os microplásticos. O microplástico é a fração insolúvel dessa dessa camada de neve. Estamos aproveitando a estrutura de laboratórios do navio para já fazer esse processamento e levar para o Brasil somente os filtros. Depois, vai para um laboratório da UFRGS, que vai analisar tanto a concentração quanto que tipo de plástico tem ali, se é que tem, né? A gente não sabe. São lugares em que isso nunca foi estudado.
Os de dez metros vão intactos até o Brasil, onde vão ser processados no laboratório e analisados a cada três centímetros. Queremos uma informação bem detalhada dos eventos de precipitação que vêm formando esse registro tanto ambiental quanto climático. Vão ser nove testemunhos de dez metros, mais 15 de três metros.
Temos análises básicas quando começamos a examinar um testemunho. A primeira coisa que buscamos é ver o quanto precipita, em média, o tamanho da camada anual de neve que se acumula naquele local e identificar a cronologia, ano após ano, os marcadores temporais, para realmente entender o quanto aquele testemunho representa.
A gente busca, a partir disso, cruzar informações de outros registros de informações climáticas obtidas por satélites, medidas em outros locais, e relacionar isso para tentar entender o contexto. Acabamos analisando diversos elementos, como os químicos, os elementos isotópicos, da composição da molécula de água, alguns poluentes. E, a partir daí, ver a informação, talvez a mais inesperada ou mais relevante para aquele local. O que de informação climática está registrado ali? Isso não vai me levar somente a uma análise de certo elemento, isso pode levar a coisas que eu não estava planejando. O que sempre busco na minha pesquisa é estar aberto para uma informação que possa ser a mais relevante possível.
Assim que estávamos acabando [a coleta na ilha Mill], observamos o vento aumentando muito rapidamente. Ficou muito forte, a neve se suspendendo, e, em poucos minutos, a visibilidade ficou muito baixa. A gente mal conseguia enxergar dois metros de distância.
Desembarcamos do helicóptero com uma carga bem grande. Muito material para perfuração e para coisas que podem acontecer. A gente não pode descer numa geleira sem um kit para acampamento para pelo menos uns cinco dias. São ambientes em que o tempo muda muito rapidamente. Se a gente não tem um kit de acampamento básico, não sobrevive.
Passamos um certo sufoco para nos abrigar. Buscamos a barraca e começamos a montar esse acampamento muito rapidamente. Não estava muito frio. Mas isso fez com que a neve, assim que batesse na gente —ela batia com força—, já fosse para o estado líquido. Então isso acaba gelando o corpo. Estávamos muito molhados.
Assim que entramos na barraca e estávamos abrigados… ali foi um momento de comemorar. E, em certo sentido, a gente se deu conta de que ali era o nosso Natal, né? Era naquele lugar. Uniu uma celebração à outra. Fizemos um brinde ali. Aconteceu de levarmos uma garrafinha pequenininha com alguma bebida. Não lembro qual era. Mas foi um golezinho para cada um.
Conseguimos ligar para o navio e dizer que a condição estava ruim e que não tinha como vir o helicóptero. E recebemos a informação da previsão do tempo, que eles já estavam estudando, que talvez fôssemos ficar três dias ali. Foi um desânimo forte.
O conforto era baixíssimo. Tínhamos duas barracas, mas decidimos montar só uma, pelas condições estarem muito extremas. Ela é projetada para quatro pessoas. Estávamos em oito. Tinha uma rotação por espaço. Empilhávamos uma perna por cima da outra. Mas sempre mantivemos a expectativa de que não ficaríamos aqueles três dias.
Como a umidade era muito grande, a barraca estava toda molhada por dentro. O nosso próprio calor condensava no teto da barraca e pingava sobre a gente. Evitávamos sair da barraca mesmo para ir ao banheiro. Sempre que alguém saía da barraca, voltava completamente encharcado. E aí, quando entrava, aquela água, a umidade ficava ali dentro, condensava e acabava molhando todo mundo. Então, nos demos conta de que não nos fazia bem que alguém saísse da barraca. Somente em último caso. O que usávamos para urinar era uma garrafa —e [as pessoas na barraca] viravam para o lado.
Surgiu a possibilidade de que, em 30 horas, talvez houvesse uma janela de tempo bom. Era ali pelas 6h, 7h da manhã. Um pouquinho antes, umas 5h, deu a impressão de que o tempo estava melhorando. Sempre estávamos sob ventania e com visibilidade muito baixa. Em algum momento, abrimos a barraca e sentimos o vento um pouquinho mais fraco, conseguimos ver um pouco mais longe. Pouco tempo depois piorou muito rápido. Ali eu pensei comigo mesmo: ‘será que aquela era a janela? Só alguns minutinhos?’ Não fui só eu que pensou isso. Foi um desânimo geral. Todo mundo ficou quieto. Um silêncio.
Depois, realmente melhorou o tempo. [A janela de tempo bom] Se concretizou, chegou com um pouquinho de atraso, mas chegou. Ficamos, no total, umas 33 horas nessa condição.
Foi um Natal bem rústico.
Mas ficou uma confiança [pela experiência]. O imprevisto não nos pegou de surpresa.