Um estudo publicado na última sexta (25) na revista Science Advances abriu novas portas na discussão sobre quando e como as características tipicamente mamíferas evoluíram. E, entre os seus achados, destaca-se o entendimento de que a postura ereta surgiu muito tardiamente na história evolutiva dos mamíferos, já no ramo que originou os mamíferos modernos (Theriiformes ou térios verdadeiros).
Por centenas de milhões de anos, os ancestrais dos mamíferos tinham uma postura muito mais semelhante à dos lagartos ou, ainda, apresentavam formas intermediárias, como nos crocodilos, com os membros posicionados abaixo do corpo, mas o tronco colado ao chão.
Como era difícil colocar na árvore evolutiva dos répteis e mamíferos essas características —uma vez que depende de uma enorme quantidade de dados sobre postura, incluindo em organismos fósseis que não preservaram tão bem assim esses ossos—, havia uma necessidade de encontrar um modelo para analisar a biomecânica animal.
Para entender como a postura evoluiu nos mamíferos, desde as espécies mais primitivas até os marsupiais e placentários modernos (também chamados térios), os paleontólogos Peter Bishop, pós-doutorando no Museu de Zoologia Comparada de Harvard, e Stephanie Pierce, professora do departamento de Biologia Evolutiva e de Organismos de Harvard, desenvolveram um modelo tridimensional computacional para analisar a evolução da postura de uma forma “espalhada” para uma forma ereta.
Foram usadas no modelo cinco espécies animais atuais —o lagarto teiú (Salvator merianae), o jacaré americano (Alligator mississippiensis), o monotremado equidna (gênero Tachyglossus), o gambá sul-americano (gênero Didelphis, um marsupial) e o cão galgo (Canis lupus familiaris, mamífero placentário)— e oito espécies fósseis, incluindo sinapsídeos primitivos, como o Dimetrodon e o Ophiacodon, mais próximos dos répteis, e os cinodontes Massetognathus e Megazostrodon, que já são mais próximos dos mamíferos.
Bishop afirmou à Folha que, primeiro, desenvolveram modelos digitais dos ossos por meio de tomografia computadorizada, scan de laser ou fotogrametria, técnica que faz várias fotos e depois as recompõem em uma imagem 3D.
“Para os sinapsídeos extintos, focamos espécies bem conhecidas e representadas por esqueletos únicos completos. Nossos modelos também exigem músculos para produzir força e movimento, então montamos os músculos virtuais em nossos esqueletos, indicando um ponto de fixação”, explicou ele.
“Depois, aplicamos a lei de Newton [da gravidade], que é a mesma lei que rege hoje as relações físicas com o ambiente e há 300 milhões de anos, permitindo-nos examinar quantitativamente como a anatomia, a mecânica e o comportamento estão interligados”, disse o pesquisador.
Os resultados apontaram que a transição de uma postura “espalhada” para uma “ereta” na linhagem evolutiva dos mamíferos atuais envolveu mudanças profundas na anatomia musculoesquelética e na fisiologia dos membros.
O maior desafio, segundo o paleontólogo, foi relacionar como essas diferentes posturas e forças biomecânicas se relacionam às nuances de cada espécie. No caso das espécies atuais, é possível observar diretamente a locomoção, mas no caso das extintas essas posturas foram inferidas a partir dos dados do modelo.
“Ainda não geramos simulações ou animações dinâmicas dos padrões de locomoção diretamente dos fósseis, essa etapa ainda está em andamento, mas podemos estimar com base em pegadas e outras marcas”, acrescentou Bishop, ressaltando que sua pesquisa se concentrou nos membros inferiores (pernas).
Os sinapsídeos primitivos, que incluem os pelicossauros como o Dimetrodon, tinham uma postura espalhada, que seria a condição ancestral dos demais répteis. Somente duas espécies apresentaram o padrão considerado tipicamente tério: o galgo inglês e o gambá sul-americano.
Segundo Bishop, o estudo tem como limitação a escassez de fósseis de mamíferos primitivos com membros preservados tridimensionais —a maioria dos organismos encontrados está achatada em placas rochosas. “Embora nosso estudo sugira que a postura ereta provavelmente estava presente apenas quando os térios evoluíram [há cerca de 160 milhões de anos], ainda não temos nenhum placentário primitivo ou marsupial primitivo em nosso conjunto de dados, então esse cenário pode mudar ainda mais.”