A estreia da segunda temporada da magnífica série “Ruptura” (Apple TV), nesta sexta (17), nos dá a oportunidade de refletir sobre o mais bem-sucedido eufemismo corporativo do nosso tempo: “colaborador”.
Na comédia distópica dirigida por Ben Stiller, a poderosa Lumon, empresa-polvo de estética fascista, mantém um departamento em que empregados se submetem voluntariamente a um experimento radical de alienação do trabalho.
Por meio do implante de um chip cerebral, têm suas memórias bifurcadas: fora da empresa, nada sabem do que fazem lá dentro; quando estão dentro, ignoram a vida que levam fora. São os colaboradores perfeitos.
No mundo em que o chip da Lumon ainda não existe (que se saiba), cabe à linguagem o mesmo trabalho. Em sites uníssonos, a velha turma do RH —também renomeado para “gestão de pessoas”— explica que a palavra empregado tornou-se arcaica. Empresas modernas contratam colaboradores.
Um parêntese: a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) continua a chamar de empregado quem, não detendo meios de produção, trabalha em troca de salário. Claro que para os gurus do colaboracionismo, interessados em sucatear a CLT, isso só atesta a beleza de sua novilíngua.
Cito um desses manuais: “Enquanto o empregado, em dias atuais, chega na empresa, faz o seu trabalho e vai embora, o colaborador tem a consciência da sua importância na organização, possui uma visão sistêmica do seu setor ou da empresa como um todo, incluindo suas metas, objetivos e não mede esforços para ‘colaborar’ com isso”.
Ênfase em “não mede esforços”! Não se chegou de um dia para o outro a esse nível de cinismo no mascaramento da natureza dos contratos de trabalho firmados entre partes desiguais —patrões de um lado, empregados do outro.
O percurso linguístico rumo ao colaborador incluiu um estágio em que se favoreceu a palavra funcionário (por tradição mais usada para o empregado do setor público) e até desvios burlescos como o de chamar empregadas domésticas de secretárias.
Também é parte desse fenômeno a onda de eufemização que varreu o mundo de meio século para cá — puxada, nesse caso, por setores progressistas da sociedade.
Hoje em dia, a menos que você seja um ogro de extrema direita, é bem difícil contestar a ideia de que acolchoar os atritos da realidade com palavras bonitas —substituindo “mendigo” por “pessoa em situação de rua”, por exemplo— melhora a vida das pessoas. Mesmo que elas continuem sem ter onde morar.
O eufemismo pode ser um aliado do processo civilizatório, como prova a sacada brilhante do primeiro hominídeo que anunciou que iria “dar um pulo ali na moita”. Pode também —o que talvez seja mais frequente— ser pura embromação. É preciso examinar caso a caso.
O da atual consagração de colaborador como sinônimo preferível de empregado está claramente a serviço do desmonte de um aparato histórico de proteção dos direitos dos trabalhadores.
Ainda melhor do que ser colaborador, claro, é dar dinheiro para um coach e virar “empreendedor individual”. Mas esse chip os laboratórios da Lumon ainda estão aperfeiçoando. Deve ficar para a terceira temporada.
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