Foi lendo críticas à novela “Mania de Você” no Threads que me lembrei do filme “O Leitor” e acabei pensando em Cuidados Paliativos.
Em “Mania de Você“, a milionária Luma (Agatha Moreira) perde tudo após levar um golpe do namorado Mavi (Chay Suede) e o público não aceita que ela não procure advogados, antigos conhecidos ou outras pessoas ricas que poderiam ajudá-la a reaver sua fortuna. Os espectadores chamam isso de um furo imperdoável do autor, João Emanuel Carneiro.
Mais de uma razão me leva a não me incomodar com a passividade de Luma. A primeira é que, ao contrário do que muita gente pensa, entre os fatos e um direito eventualmente reconhecido em processo judicial vai uma longa distância. Sim, era óbvio que Luma poderia ter ajuizado uma ação contra o ex-companheiro, era óbvio que ele poderia ser condenado inclusive criminalmente, assim como é óbvio que esse é um desfecho apenas possível e que com certeza levaria anos. Infelizmente, o mundo do direito é ainda menos romântico que o da novela das nove.
O segundo motivo é uma mera ilação da minha parte. Eu, que nunca fui rica de novela, mas já assisti a muitas, não acho que a personagem que levou o golpe fosse receber muita simpatia e solidariedade dos demais ricos de novela. Luma poderia ter envenenado as pessoas contra Mavi? Poderia. Mas o suficiente para que comprassem a história de que ele tirou todo seu dinheiro com base numa procuração de plenos poderes? Não sei.
É na terceira razão que encontro o fundamento deste texto. Confrontada sobre ter simplesmente largado tudo para lá, aceitado a má sorte e tentado se reerguer do zero em São Paulo, Luma responde que teve vergonha. Posso imaginar o tribunal da internet julgando que vergonha não é justificativa suficiente para algo tão radical.
E é aí que chego ao filme “O Leitor” (2009). Baseado no livro homônimo de 1995, a história é, para mim, acima de tudo, sobre quanto a vergonha de reconhecer vulnerabilidades extremas pode levar alguém a ações inimagináveis do ponto de vista do ser humano médio. Não tenho como acrescentar nada mais à afirmação sem revelar o segredo que vale a história, mas acredito que quem assistiu ao filme entenderá o tamanho do sentimento que conduz minha análise.
Em um artigo que escrevi recentemente com a médica paliativista Sarah Ananda, desenvolvemos algo que eu havia cunhado como “teoria da não suposição”. Médicos têm dificuldade de respeitar a autonomia de seus pacientes, porque projetam neles os próprios valores e os valores que parecem evidentes para as pessoas em geral. Sobreviver diante de uma doença grave parece ser o desfecho esperado por todo mundo. Acontece que, como nossas mães sempre dizem, não somos todo mundo.
Na série Justiça (2016), Beatriz, a personagem de Marjorie Estiano, pede ao marido para matá-la, depois de ficar tetraplégica. Aquela vida, sem os movimentos das pernas, sem a dança que dá sentido a sua existência, não lhe interessa. Não entendo a personagem. Não entendo, porque não sou, nem me aconteceu, tal como aconteceu à Beatriz.
Na semana passada, fiquei repentina e inexplicavelmente sem voz. Como diz o livro de contos do escritor Bruno Inácio, que eu havia acabado de receber, deparei-me com a realidade insuportável de “de repente nenhum som”. No domingo seguinte, eu seria entrevistada em uma rádio local e, pior, iria cantar. Minha filha de três anos ficou muito carente com meu silêncio obrigatório e eu poucas vezes em 40 anos me senti tão vulnerável. Automaticamente me transportei para um simpósio de câncer de laringe que assisti em 2019 e comuniquei ao meu marido que eu seria capaz de aguentar muita coisa para permanecer viva. Mas perder a voz não seria uma delas.
Poderia mudar de ideia se e quando acontecesse? Certamente. Mas para entender o tamanho do sofrimento e a dimensão dos valores em um momento de vulnerabilidade extrema como o acometimento de uma doença grave, e para decidir quais são as medidas aceitáveis ou não para cada um de nós – pessoas que não são todo mundo -, é necessário, é imprescindível, contar com equipes de saúde que nos enxerguem como pessoas. Não somos apenas corpos com elementos estranhos a ser combatidos. Ninguém é só uma doença e, mesmo nos casos em que há tratamentos muito bons contra ela – o que, infelizmente, é muito menos comum do que se pensa –, há de se investigar, com cautela, se o ideal de sucesso da medicina – sobrevivência – é suficiente. Para muita gente, não será. E é assim que, de “Mania de Você”, passando por “O Leitor”, chego aos Cuidados Paliativos.
Nestes dez anos do blog, sou levada a pensar que avançamos nas discussões sobre uma morte sem tabu. Mas avançaremos muito mais quando pararmos de resistir a falar, também, sobre vidas sem tabu.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.