“Mais vale ser a vítima destruída do que, por a destruir, destruir com ela o gosto de viver.” A citação de Lady Macbeth, retomada por Freud no texto “Arruinados pelo êxito”, me parece um ponto de partida preciso para essa pergunta. Gosto tanto da passagem quanto do nome do texto, pois ambos escancaram o paradoxo que nos atravessa: a felicidade e a calmaria são, muitas vezes, mais incômodas do que angústias e turbulências. Isso porque elas nos apresentam uma nova possibilidade de ser e sentir, condicionada a um convite que exige coragem: deixar morrer um eu calcado numa dor identitária.
Destruir a vítima que ainda mora em nós —aquela que foi rejeitada, traída, enganada, desamparada— para, enfim, viver um amor que nutre mais do que machuca, é romper com o enredo que nos deu contorno, sentido, e também laços de reconhecimento. Ainda que estivéssemos marcados pela ausência de amor, pelo abandono ou pela traição… não estávamos sós. Abandonar esse “eu vítima” não é só abrir mão da dor, mas de um eixo que organizava a vida, uma espécie bússola psíquica, ainda que trágica. É perder o mapa que, por mais torto e sofrido, estruturava nossa forma de amar, desejar e existir no mundo. E isso, às vezes, assusta mais do que a solidão —ou do que a possibilidade de reviver uma dor de amor.
Quando algo começa a dar certo demais, é como se algo dentro de nós se alarmasse. O inconsciente não lida bem com a paz. O amor correspondido, a estabilidade afetiva, o cuidado cotidiano: tudo isso, que na teoria deveria nos acalmar, na prática desperta ansiedades profundas: Será que merecemos isso? Conseguimos manter essa relação gostosa? E se acabar, como lidaremos com a dor? E se for só uma calmaria antes de uma tempestade que vai mais uma vez me devastar emocionalmente? Conseguirei colar meus cacos ou vou me espatifar? O medo de perder pode ser tão insuportável quanto o medo de nunca ter. E, diante dessa tensão, é comum sabotarmos aquilo que mais desejamos —não por falta de vontade, mas por excesso de defesa.
Confundimos nossas inseguranças e traumas do passado com intuição e interpretações sobre o presente e o futuro. Na clínica, isso aparece de muitas formas: desconfianças que se instalam cedo demais, interpretações catastróficas sobre um fim de semana sem resposta, dúvidas que surgem no instante em que o vínculo começa a se firmar —”será amor ou só carência?”— ou ainda na insistência em trazer os fantasmas do passado para dormir na nova cama como frases ditas por antigos parceiros que ainda reverberam, comparações com a ex-mulher idealizada, já alçada ao posto de inalcançável.
Em vez de simplesmente baixarmos a guarda e nos permitirmos sentir mais e entender menos, deixamos o medo falar mais alto e ele, aliado às feridas antigas, fabrica profecias autorrealizáveis: temíamos tanto que desse errado que acabamos sabotando a relação só para ter o gosto amargo de estarmos certos. Nossa sina é mesmo ser a vítima infeliz no amor. A dor voltou a nos fazer companhia. E essa companhia é acolhedora pois é familiar. Tem linguagem. Tem quem reconheça.
E mais: às vezes, estar bem parece ser trair um pacto invisível de sofrimento compartilhado —com a mãe que foi abandonada, a avó que criou os filhos sozinha, o grupo de amigas unidas pela desilusão. Como ser feliz no amor sem abandoná-las?
Amar quando tudo parece certo exige mais coragem do que amar no drama. Porque o drama nos dá um papel. A paz exige inteireza. Sem fuga. Sem performance. Apenas presença e isso, às vezes, é insuportável. Isso por que na pura presença há também o convite para a falta de controle. Amar é confiar parte de nós ao outro. Entregar. Render-se à incerteza. E isso é difícil para quem aprendeu a sobreviver controlando emoções e vínculos. Por isso, o medo não é, na maioria das vezes, do outro —é de nós mesmos. Do que faremos com o que nos é oferecido. Do que deixaremos entrar. De quem nos tornamos quando não estamos ocupados fugindo, ou implorando, ou tentando consertar o que nunca foi nosso.
Freud escreve: “Não é absolutamente incomum para o ego tolerar um desejo tão inofensivo na medida em que ele só existe na fantasia e cuja realização parece distante; pelo contrário, porém, o ego se defenderá ardentemente contra esse desejo tão logo este se aproxime da realização e ameace tornar-se uma realidade”. Sabotar a relação é, muitas vezes, uma tentativa de recuperar o controle sobre nossa vulnerabilidade.
E percebo também, no medo de estar tudo indo bem, uma versão cotidiana do medo da morte. Afinal, “o que vem depois?”. Um analisante me contou que ele e a namorada querem chegar juntos ao auge: do amor, da carreira, da disciplina… Perguntei: e depois do auge? É só decadência?
Escolher ficar também é escolher perder. O amor que dá certo é o que, em algum momento, também vai doer, falhar, se reencontrar. Lembro de “Sobre a transitoriedade”, outro texto de Freud. Nele, um artista lamenta que as flores morrerão em breve, como se o fim retirasse o sentido do durante. Freud propõe o oposto: é justamente por serem passageiras que as coisas ganham beleza, intensidade e valor. O luto antecipado nos impede de fruir a beleza enquanto ela existe. Negar o fato de que um dia teremos que lidar com o luto faz com que corramos o risco o medo das mortes emocionais se façam mais presentes que o amor em si. E se pudermos acolher o luto e a morte como parte do amor e não como fim dele?
Já não acreditamos no felizes para sempre. Mas será que, por isso, nos privaremos do felizes agora? Há um mês. Há dois anos e doze dias. Haverá luto dentro do amor. Mas isso não o torna menos bonito.
Não é o fim que tira o valor do presente —é a recusa de habitá-lo. A pressa de prever a perda nos impede de mergulhar na presença. O mais arriscado não é se lançar: é se negar. Repetir a solidão só porque ela já nos é íntima. E chamar de segurança o mesmo abandono de sempre. Habitar o amor exige responsabilidade: pela desconstrução de velhas fantasias e pela sustentação do novo que nasce. Que possamos sentir mais e entender menos. E que ousemos ser felizes.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
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