O menino Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, brincava em frente à casa de uma prima no Morro do São Bento, em Santos (litoral de SP) na noite de terça (5), quando foi atingido por um tiro. Ele foi levado ao hospital, mas não resistiu e morreu.
O disparo “provavelmente” saiu de uma arma da Polícia Militar, segundo a própria PM de São Paulo.
“Nós entendemos que provavelmente esse disparo partiu de um policial militar”, afirmou o coronel Emerson Massera, porta-voz da Polícia Militar, em uma entrevista coletiva na quarta (6).
“O projétil ficou alojado no abdômen do menino que infelizmente faleceu. Será feito o confronto balístico para verificar a origem desse disparo”, afirmou o coronel. “Teremos essa certeza depois do laudo da perícia.”
Não é um caso isolado. Em 2023, Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, foi morto por policiais do RJ na Cidade de Deus, segundo inquérito sobre o caso feito pela própria polícia. No mesmo ano, Eloáh da Silva dos Santos, de 5 anos, foi morta pela polícia no Morro do Dendê, segundo investigação do Ministério Público.
Inquéritos das próprias polícias ou do Ministério Público apontaram que policiais foram os autores em outros crimes como esses.
Em 2020, as vítimas foram João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos; Alice da Silva Almeida, de 3 anos; Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos.
Em 2019, foi Ágatha Félix, de 8 anos. Em 2017, foi Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, baleada dentro da escola.
Nenhuma dessas mortes foi computada como resultante de ação policial, mas como homicídio.
Ou seja, as mortes de Thiago e Eloah em 2023 não estão entre as 243 mortes de crianças e adolescentes registradas em nove estados brasileiros naquele ano como resultado de intervenção do estado.
O número é apontado no relatório Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão, divulgado nesta quinta (7) pela Rede de Observatórios da Segurança, que reúne institutos de pesquisa do Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. O estudo é elaborado com dados das Secretarias de Segurança Públicas estaduais de cada Estado pedidos via Lei de Acesso à Informação.
O relatório aponta também que das 4.025 pessoas mortas pela polícia nesses estados em 2023, 87,8% (2782) eram negras, uma proporção bem maior do que a proporção de negros na população brasileira. Isso equivale a uma pessoa negra morta pela polícia a cada quatro horas em 2023 somente nesses nove estados.
A BBC News Brasil procurou as secretarias de segurança dos nove estados, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem. Sobre o caso de Ryan, a PM de São Paulo disse que está investigando e providências serão tomadas.
As secretarias só incluem como mortes causadas em decorrência de ação policial os casos em que a Polícia alegou ter agido em legítima defesa – os outros casos são registrados como homicídios, sem uma separação estatística que permita saber quantos deles foram cometidos por policiais.
Esse tipo de registro é problemático, afirma Silvia Ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, pois induz a pensar que em todos os casos de homicídio pela polícia, a responsabilidade é apenas do policial que atirou individualmente, e não da corporação.
“E essas mortes nem sequer são contabilizadas como mortes decorrentes de ação policial. Entram para as estatísticas de homicídios como se fossem efeitos colaterais aceitáveis, ou balas perdidas, ou azares, ou acidentes pontuais”, afirma Ramos, que é porta-voz da Rede de Observatórios.
“Não dá para pensarmos nessas tragédias como casos isolados em que um policial específico abusou da força ou errou, ou foi indiferente a quem estava no entorno de sua ação”, continua Ramos. “Os responsáveis pelas políticas de segurança autorizam um tipo de polícia violenta que causa insegurança e mortes dependendo da área em que atuam.”
‘Faltam investigações’
Segundo as entidades que fazem parte da Rede de Observatórios, não há, nos estados, investigações individuais e transparentes sobre cada um dos casos registrados como legítima defesa para garantir que de fato foram legítima defesa.
“Foi legítima defesa? Sem problemas. Mas é preciso haver uma investigação, uma descrição detalhada das circunstâncias, transparência”, diz Ramos. “Da forma como as coisas acontecem hoje, no atacado, isso simplesmente não acontece. A polícia mata tanto que não há investigação.”
Ramos afirma que o Brasil, na prática, está consolidando a existência de “duas polícias”.
“Uma delas que vê um menino negro, na periferia, de bermuda e chinelo como elemento suspeito, como perigoso, e cuja morte pode ser registrada como legítima defesa e fica por isso mesmo. E outra que vê um menino branco, em um bairro nobre, e entende que está ali para proteger. A própria atitude inicial é diferente, a polícia não atira”, diz ela.
Os dados das secretarias estaduais compilados no relatório mostram que em oito dos nove estados analisados a proporção de negros mortos em decorrência da ação de agentes de segurança é muito maior do que a proporção de negros na população.
A análise dos dados também mostra que cada Estado tem particularidades quanto à letalidade policial–e que os números são muito sensíveis a políticas públicas e à postura do governo no poder, afirma Ramos.
“Esse indicador específico, de mortes decorrentes de ação policial, é diferente de outros como homicídio ou crimes contra o patrimônio, que são resultantes de muitas variáveis bem complexas”, diz a pesquisadora.
“As mortes decorrentes de intervenção policial são claramente resultados da postura da cadeia de comando. Se chega um governador novo, troca os comandantes, o secretário, dá uma ordem para haver mais controle, mais responsabilização, já naquele ano a gente sente a diferença.”
Nos cenários estaduais, chama a atenção o Estado da Bahia, que tinha uma tendência de aumento da letalidade policial que explodiu em 2023, quando o Estado superou o Rio de Janeiro nesse quesito pelo segundo ano consecutivo.
Foram 1.702 mortes causadas por agentes do Estado na Bahia em 2023–o segundo maior número já registrado desde 2019 dentre os estados monitorados.
O ano foi o primeiro da administração de Jerônimo Rodrigues (PT), depois de dois governos consecutivos de Rui Costa (PT).
“Chama a atenção que um governo que se diz progressista tenha um índice tão alto de letalidade policial”, diz Ramos.
O relatório também destaca como exemplo dessa relação direta do índice com a política do governo o aumento de 21% na letalidade policial em São Paulo sob a administração de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a diminuição da letalidade após a intervenção federal no Rio de Janeiro–o Estado apresentou menos de 1.000 mortes pela primeira vez desde o início do monitoramento.
Este texto foi publicado originalmente aqui.