A Polícia Civil do Ceará investiga acusação de que o Ceará Sporting Clube utilizou um contrato com a casa de apostas Estrela Bet, patrocinadora do clube, para emitir mais de R$ 45 milhões em 85 notas frias em 2023.
As notas eram canceladas até 72 horas depois de emitidas, após serem apresentadas a fundos de investimento como lastro para adiantar valores que o clube, na verdade, não fazia jus a receber.
A Estrela Bet alegou que o clube cometia eventual crime com a prática e rompeu o contrato.
Reeleito presidente do Ceará, João Paulo Silva e outras oito pessoas são investigadas sob suspeita de formação de quadrilha, apropriação indébita e lavagem de dinheiro na gestão da agremiação, que jogará a Série A no ano que vem.
À Folha João Paulo confirmou que emitia notas para cancelá-las depois, sem que isso fosse permitido pelo contrato e sem o conhecimento da patrocinadora. Ele afirmou ainda que desconhece o inquérito, que é público, e, por isso, não poderia comentá-lo.
Então diretor financeiro, João Paulo assumiu a presidência do Ceará em março do ano passado, para um mandato tampão em meio a uma crise financeira. Com o clube rebaixado e sem caixa, se valeu do contrato com a Estrela Bet para criar lastro para captação de recursos, ainda que o acordo não envolvesse a emissão de notas e proibisse expressamente a antecipação de valores a receber, como ele fez.
“Tinha uma necessidade do fundo de ter lastro [para a operação]. Para confortar essa necessidade do fundo, eu emitia as notas e depois cancelava”, admitiu João Paulo à reportagem, negando que o mecanismo seja um tipo de fraude.
A Estrela Bet disse que não reconhecia as notas e que reclamou reiteradas vezes da prática ao longo de um ano, tendo rompido de forma unilateral o contrato em abril passado. Na notificação obtida pela Folha, acusou o Ceará de estar cometendo eventual crime.
“As recentes operações de emissão e cancelamento de notas fiscais e a antecipação de recebíveis, no contexto e forma em que foram realizados, violam as provisões contratuais, o artigo 422 do Código Civil e várias outras disposições legais, de natureza cível, fiscal e, eventualmente, até criminal”, disse a Estrela Bet no documento, de 17 de abril.
O distrato ocorreu depois que a Justiça acatou pedido de antecipação de provas apresentado por conselheiros de oposição no Ceará, que conseguiram acesso às notas canceladas. Eles juntaram outros documentos obtidos a partir da decisão e os entregaram a uma auditoria independente.
O relatório dos investigadores aponta que, somente em 2023, o Ceará realizou 40 termos de cessão de crédito, uma espécie de empréstimo, a maior parte deles junto a três fundos da gestora CVPAR –que não é investigada–, antiga patrocinadora do clube, lastreados por essas notas emitidas em contrato com a Estrela Bet, canceladas logo depois.
Em uma operação do tipo, o cedente (neste caso, o Ceará) apresenta documentos que atestam que ele vai receber um valor (por exemplo, R$ 1 milhão) de um sacado (a Estrela Bet). O fundo (CVPAR) antecipa o dinheiro, neste caso concreto pagando R$ 923 mil, aceitando receber, quando o patrocinador fizer o pagamento, o valor integral de R$ 1 milhão, mais juros.
Como era o esquema, segundo investigação:
- Ceará pede um empréstimo à CVPAR;
- Como garantia, apresenta uma nota na qual atesta que tem a receber um valor da patrocinadora Estrela Bet;
- Com base nas notas, a CVPAR empresta o dinheiro;
- Dias depois, o Ceará cancela a nota usada como garantia
O contrato entre Ceará e Estrela Bet, porém, vedava expressamente a “cessão/antecipação de recebíveis”, de acordo com a patrocinadora. O documento seria de conhecimento da gestora de fundos, segundo pessoas a par das negociações.
Mesmo assim, entre abril e dezembro de 2023, a CVPAR aceitou 85 notas do Ceará emitidas sob o contrato com a Estrela Bet que foram canceladas em seguida.
As notas aceitas pela CVPAR referentes a recebíveis de 2023 e 2024 somam R$ 37 milhões, mas o Ceará só teria direito a receber da patrocinadora no período menos da metade disso, cerca de R$ 17 milhões.
Pelo contrato de patrocínio com a Estrela Bet, o Ceará receberia R$ 5 milhões no segundo semestre de 2023, mas em uma única operação em junho a CVPAR aceitou 15 notas emitidas pelo clube sob o contrato mantido com a Estrela Bet, que somavam R$ 7,5 milhões e foram apresentadas como sendo referentes ao patrocínio até o fim do ano.
O Ceará foi assessorado em todas essas operações pelo escritório de advocacia Vale & Vieira, que pertence ao CEO e fundador da CVPAR, Cláudio Vale Vieira. À Folha o escritório disse que foi contatado “para atuar como consultor na estruturação de dívidas, captação financeira e acesso a mercado de capitais”.
Por esse serviço, o escritório de Cláudio Vale era remunerado em cerca de 8,5% de tudo que o Ceará conseguia arrecadar com as notas junto aos fundos CVPAR II, Veritá e NSP, geridos pela empresa em que Cláudio Vale é CEO. No total, a Vale & Vieira Advogados recebeu pelo menos R$ 1,9 milhão do Ceará em 2023 graças a essa operação.
A gestora de fundos disse à Folha que “as operações são legítimas, regularmente lastreadas dentro da política de elegibilidade de créditos constantes do regulamento e foram devidamente liquidadas” e elogiou o Ceará como possuidor de “regular histórico de operações liquidadas, possuindo orçamento e receitas suficientes para honrar os seus compromissos”.
Em razão de dívidas com outros clubes, a Fifa impôs ao Ceará nesta temporada restrições para registrar atletas. Ainda assim, o clube conseguiu acesso à Série A, tendo a CVPAR como patrocinadora na última rodada.
Questionada se tinha conhecimento de que as notas que acolhia eram canceladas depois, a CVPAR disse que o “eventual cancelamento, se não comunicado, não é sabido”, sem explicar se houve a comunicação. “Contudo, operação segue lastreada em contrato e demais garantias.”
João Paulo disse, em assembleia em 30 de abril, que os fundos tinham conhecimento disso. Agora, à reportagem, afirmou que a CVPAR só ficou sabendo da prática já este ano, depois dos fatos narrados na reportagem e antes da fala na assembleia.
“Destacamos que a origem e a solvabilidade dos títulos negociados são de responsabilidade do cedente da operação, que no caso concreto era o CSC, a quem o credor poderá exigir o cumprimento da obrigação de recompra em caso de vício e/ou questionamentos”, afirma a empresa em nota.
À Folha, a Estrela Bet disse que o contrato foi rompido “de maneira formal e dentro das disposições contratuais previamente estabelecidas e comunicadas ao clube”, reforçando que a confidencialidade contratual impede a divulgação de detalhes específicos.