A PEC (proposta de emenda à Constituição) da Segurança Pública apresentada pelo governo federal nesta quinta-feira (31) teria pouco efeito prático sem aumento do orçamento de forças policiais federais e deve enfrentar resistência no Congresso Nacional, na opinião de especialistas ouvidos pela Folha. Parte do conteúdo é elogiado, mas o consenso é que o texto dificilmente seria aprovado em seu formato atual.
O anteprojeto da PEC, apresentado pelo ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e Segurança Pública) a governadores, prevê mais responsabilidades para a PF (Polícia Federal) e transforma a PRF (Polícia Rodoviária Federal) em uma força ostensiva. Pela proposta, a Constituição passaria a prever que a PF investigue crimes ambientais e milícias. Já a PRF mudaria de nome para Polícia Ostensiva Federal (POF), passaria a patrulhar também rodovias e hidrovias e teria papel similar ao das polícias militares estaduais.
Essa medida pressupõe mais contratações para os dois órgãos, mas não menciona o que será feito com um dos principais instrumentos do governo na área de segurança —a Força Nacional, composta por tropas temporárias cedidas pelos estados e considerada insuficiente para dar conta das crises para as quais é acionada.
Há consenso entre especialistas de que a substituição da Força Nacional por uma corporação com quadros fixos seria positiva, mas a proposta não deixa claro se isso vai de fato ocorrer.
“A Força Nacional é uma estrutura precária, são policiais que ficam num local um ou dois meses, com diferentes graus de formação”, diz o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional da USP. “Precisamos de uma estrutura permanente, uma carreira permanente.”
A proposta de criação da POF no lugar da PRF, por outro lado, já recebeu críticas de integrantes da bancada da bala no Congresso. A percepção é de que o novo órgão poderia invadir competências das PMs.
Durante a apresentação da PEC, Lewandowski deixou claro se tratar de uma proposta inicial que ainda deve receber sugestões de mudanças dos governos estaduais. Na avaliação de José Vicente, para aumentar as chances de sucesso seria necessário também ouvir os parlamentares antes de protocolar o projeto na Câmara.
Uma das propostas centrais da PEC é incluir o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) na Constituição. O sistema foi criado por uma lei em 2018 que visa fortalecer o trabalho integrado dos órgãos de segurança pública. Lewandowski propõe que o governo federal tenha um papel mais importante na definição das diretrizes da política nacional de segurança.
Especialistas veem como positiva a ideia de padronizar os modelos de boletim de ocorrência e as estatísticas criminais e de unificar as certidões de antecedentes criminais. Uma vez implementado, o SUSP também deve impedir o bloqueio de dinheiro da segurança pública no orçamento federal.
A implantação do sistema, no entanto, não depende da aprovação de uma PEC —a medida serviria apenas para proteger o SUSP de eventuais mudanças por futuros governos—, e sua aprovação deve demorar.
“Fico em dúvida se a PEC é o melhor formato e se esse é o melhor momento para essa medida”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do instituto Sou Da Paz. “Minha grande preocupação é que a PEC tome energia demais do governo, sendo que a segurança pública demanda um diálogo constante do governo federal com os entes federativos, com as polícias.”
Durante a apresentação, Lewandowski também afirmou que há outras medidas em estudo no ministério. Entre elas está uma reforma da lei de lavagem de dinheiro, que deve incluir o uso do garimpo e de moedas digitais nesse crime, e a análise de propostas que endureceriam o Código Penal e a Lei de Execuções Penais —estas últimas feitas por governadores das regiões Sul e Sudeste.
Para Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte das mudanças na PEC deve ter pouco efeito prático. Ele teme que o pacote perca a identidade quando começar a receber emendas no Congresso Nacional e prevê uma tramitação lenta.
“Durante a própria apresentação a gente viu a dificuldade dos entes políticos brasileiros em colocarem seus interesses políticos de lado e construírem uma solução para um problema complexo”, disse Alcadipani, referindo-se à troca de farpas entre o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e o presidente Lula (PT). “Ninguém em sã consciência imagina que a direita vai ceder à esquerda a agenda de segurança pública, que é tão cara aos conservadores. A medida mais prática seria nomear um ministro da Segurança Pública e fortalecer essa agenda, mas isso não vai acontecer.”
Durante a reunião com Lula em Brasília, Caiado criticou a proposta, chamou-a de inadmissível, e defendeu maior autonomia para estados legislarem sobre temas penais. “Faça a PEC, transfira a cada governador a prerrogativa de legislar sobre aquilo que é legislação penal e penitenciária”, disse.
Lula, ao final da reunião, retomou o tema e ironizou a fala de Caiado. “Ao invés de eu ter chamado a reunião, era o Caiado que devia ter chamado a reunião para orientar como é que se comporta, para a gente acabar com o problema da segurança em cada estado.”