O Cine Ipiranga serviu de palco à 1ª Mostra Angústia de Cinema, realizada no último sábado, com seis produções de tirar o fôlego, que fazem jus ao nome do evento.
A deterioração do prédio —que não perdeu sua majestade— escancara os efeitos nefastos do descaso e da falta de visão de governantes e empresários. A combinação entre o ambiente e os filmes —quase traumáticos de assistir—, seguida de debates, nos convidou a refletir sobre o que é a angústia e por que devemos nos debruçar sobre ela.
Para Freud, a angústia é um afeto inevitável, o sinal do desamparo que nos funda. Jogados neste mundo opaco, dependemos da boa vontade dos outros, contamos com um aparelho de linguagem que falha ao tentar traduzir nossas vivências e somos atravessados por desejos que frequentemente se chocam com as exigências da cultura.
Lacan, por sua vez, afirma que, diferentemente dos outros afetos, a angústia é o que não engana. Ela sinaliza que algo está fora da ordem, exigindo escuta, reflexão e elaboração. É como um termômetro interno que nos avisa que é hora de consultar nossos desejos —um “pit stop” necessário na corrida em circuito fechado em que muitas vezes nossa vida se torna.
Olhar para o centro, ver suas fraturas, assumir seus limites e potências, resistir à degradação que se opõe à existência: essas são ações que dizem respeito tanto ao espaço público quanto a cada um de nós. Elas vão na contramão da demanda atual por silenciar a angústia com drogas lícitas e ilícitas, redes sociais, consumo, produtividade incessante.
Esse grupo de artistas, seus apoiadores e o público presente realizaram exatamente o oposto: ocuparam um espaço esquecido no coração da cidade para tratar de um tema que nossa sociedade insiste em ignorar.
O mal-estar provocado pela angústia costuma ser o que move o sujeito em direção à análise. Embora sejamos capazes de enumerar os perrengues de nossa vida —desemprego, divórcio, filhos, solidão…—, desconhecemos como essas experiências se enraízam em nossas questões singulares e existenciais, já por si mesmas angustiantes.
Por isso, a angústia é o afeto que serve de bússola em uma análise. Ela leva o sujeito a se perguntar sobre seu desejo e sobre quem é. Mais que um sintoma, é um sinal de abertura: aponta para o desejo e carrega consigo um enorme potencial de transformação. Se escutada, pode nos mover em direção a uma vida que faça algum sentido. Por isso ela é também uma forma de resistência à alienação.
Muito além das análises, lidar com esse afeto é uma tarefa humana desde sempre. Para isso, contamos, acima de tudo, uns com os outros e com a capacidade de narrar nossas experiências de forma a torná-las reconhecíveis e compartilháveis. Ao contrário do exibicionismo promovido pelas redes, que afasta da intimidade e da troca real, o trabalho com a angústia nos humaniza e nos torna solidários.
Parabéns a Fabrício Brambatti, Tommaso Protti e a todos os envolvidos nesse belíssimo projeto, que trouxe ao palco a forma mais potente que os humanos criaram para lidar com o afeto que não engana: a arte.
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