Alguns anos atrás conheci alguém que morou naquele prédio no Rio de Janeiro que caiu nos anos 90. “Eu não tenho nenhuma foto da minha infância.” Ele me disse no meio de uma conversa, para só então revelar que os registros haviam sido perdidos no desastre. Ele teve “sorte” (entre aspas porque meu lado cínico teima em gritar “sorte tem quem não vê a casa desabar!”). Ele não estava em casa quando tudo aconteceu e ninguém de sua família perdeu a vida no episódio. Mas ao ouvi-lo falar sobre seu passado, cujas histórias jamais puderam novamente ser ilustradas por fotografias, fiquei com a sensação de que ele tinha, sim, perdido alguém.
Nesta semana, enquanto ouvia sobre os incêndios em Los Angeles, lembrei desse amigo com o passado guardado apenas na memória. A mulher que falava no rádio, assim como ele, também teve “sorte”. Alguns diriam que ela teve até mais sorte do que o meu amigo. Com a voz embargada ela descrevia um suco complexo de sentimentos. Misturados no liquidificador da tragédia havia tristeza, alívio, culpa… Sua casa permanece, mas a cidade ao redor desapareceu. Os lugares da sua infância, a escola em que seu filho estudou, o restaurante da esquina onde todos a conheciam, tudo tinha ido embora. Daquela vida que ela vivia, daquele passado ainda tão fresco na memória sobraram apenas as fotos e as cinzas no chão.
Ando pensando muito sobre esse lado dos eventos climáticos extremos, sobre a devastação imaterial que eles deixam para trás.
Quando aconteceram as enchentes no Rio Grande do Sul, lembro de uma jornalista ter sido duramente criticada por comparar o sentimento das vítimas da tragédia ao que experimentou quando teve suas joias roubadas algum tempo antes.
“Foi doloridíssimo…”, ela disse com a mão sobre o peito. “Eu fico imaginando quem perdeu tudo, a sua casa, uma pessoa que deu um duro danado para comprar uma geladeira, um fogão, a sua cama…”
Entendo a intenção da jornalista, apesar de achar a comparação de extremo mau gosto. Mas, para além do péssimo timing, o comentário falha em captar a profundidade da perda que um evento como esses acarreta. A perda, sim, daquilo que é coisa sólida, tangível, daquilo que construímos com trabalho e suor e que foi destruído. Mas também a perda do que não é possível reconstruir, a perda do passado, da vida que existia antes da tragédia que achamos que jamais acontecerá conosco, antes do trauma de, num piscar de olhos, perder tanto.
Perguntada sobre a sequência dos fatos, a moça no rádio lá em Los Angeles falou sobre o que fez quando recebeu o SMS alertando para o risco iminente de incêndio em sua residência. “Começamos a colocar coisas no carro, primeiro os essenciais, e aí chegou um momento emocional e eu coloquei o meu vestido de casamento.” Suspirei com a beleza triste do que acabara de ouvir e lembrei daquela brincadeira que a gente fazia quando criança de perguntar quais três coisas você levaria se a sua casa estivesse pegando fogo. Certamente, se a tal moça tivesse respondido que levaria o vestido de noiva, teria sido reprimida pelos outros participantes da brincadeira. Nada poderia ser mais inútil naquele momento. Mas, diante do fogo que se aproxima para queimar tudo, preciso concordar com ela, nenhuma outra resposta poderia fazer mais sentido.
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