Era fim de tarde quando Delci Moreira, 53, saiu de uma estrada de terra e subiu no acostamento, um barranco com uma placa de quebra-molas encravada de cabeça para baixo e uma pequena cruz à frente. Ele queria explicar o que aconteceu na comunidade de Lagoa de Bastos, em Piatã (BA), desde a chegada de uma empresa de energia eólica.
Atrás dele, estava a serra da Chapada Diamantina, onde o sol iria se pôr. Na frente, a própria estrada, onde caminhonetes brancas passavam repetidamente. “São da empresa”, dizia Delci quando mais um carro passou e, dessa vez, parou um pouco à frente, em um quebra-molas.
A porta da caminhonete abriu e uma voz alta falou que “o pai do menino” estava conversando com jornalistas. Era o chefe de segurança do parque eólico, explicou Delci.
O agricultor ficou conhecido assim na empresa PAE (Pan American Energy) porque atrás do mesmo barranco onde pisava, em uma vala de drenagem de chuva construída pelo empreendimento, seu filho de 13 anos ficou soterrado até a cintura durante uma brincadeira com amigos no ano passado. Um deles, Paulo Gustavo, de mesma idade, foi soterrado até o pescoço e morreu sufocado.
“Eles [da PAE] vêm dizer que não foram os responsáveis. Como não foram, se isso não existia antes?”, diz Delci. Segundo ele, a vala foi aberta durante a construção da estrada em 2023 para passagem dos equipamentos das turbinas eólicas. Como a comunidade era contra, afirma, a empresa prometeu fechar a via ao final das obras, o que não foi cumprido.
A vala de drenagem serve para conduzir a água da chuva de forma controlada, impedindo que ela estrague a pista. A empresa, porém, deixou no meio dela uma contenção de terra que acabava armazenando água depois de temporais.
Em abril de 2024, a água acumulada despertou o interesse das crianças, conta Delci, que brincaram de escavar a contenção do lado oposto da vala até chegar no que parecia um rio. Durante o processo, a terra cedeu e caiu neles.
“Vi meu filho todo cheio de terra —na cabeça só tinha limpo o olho. Vi meu filho morto. Quando arribei a cabeça dele… não suportava”, diz Ilza Oliveira, 57, mãe de Paulo Gustavo. “Estava pensando que ia ficar doida, não falava coisa com coisa”.
Ilza diz que não recebeu visita dos executivos da PAE, os quais não foram ao velório, nem ofereceram auxílio psicológico. Após o ocorrido, passaram três dias sem usar a estrada e instalaram um quebra-mola ao lado da vala.
Quem desenterrou Gustavo foi um dos agricultores da comunidade, José Matias, 74, com as próprias mãos. “Foi muito difícil”, diz. “Até hoje vejo a cena”.
As crianças costumavam brincar soltas pela comunidade, na estrada pequena e conhecida por todos, dizem os moradores, segundo os quais nunca havia acontecido acidente tão grave antes.
A PAE afirma que “lamenta profundamente o ocorrido”, mas que não tem nenhuma relação com o acidente. “De qualquer forma, durante esse período houve contato com a família através da empresa contratada, que deu apoio e se manteve à disposição”, diz a nota.
Lugar propício
Os moradores da comunidade de Lagoa de Bastos vivem da agricultura familiar em uma região com pinturas rupestres, nascentes de água e a árvore Gameleira —ou Yayá, que deu nome à etnia indígena Payayá.
Em 2013, sem saber, entraram no primeiro Atlas Eólico da Bahia, iniciativa do governo para anunciar os recursos eólicos abundantes e atrair empresas.
O documento evidenciou sete principais áreas para empreendimentos eólicos. Uma delas era “Novo Horizonte, Piatã, Ibitiara e Brotas de Macaúbas”, onde fica a comunidade de Lagoa dos Bastos.
Dez anos depois, chegou a PAE, empresa de gás argentina que tem apostado nas renováveis, com investimento de R$ 3 bilhões para construção de parques eólicos em áreas em seis municípios da região, incluindo Novo Horizonte e Piatã.
Rachaduras na comunidade
Enquanto Delci explicava o que havia acontecido no barranco, outros moradores da comunidade paravam para perguntar se aquela movimentação era uma reportagem. Depois, relatavam os impactos que haviam sofrido desde a ampliação das estradas para a passagem de veículos pesados, o que provocou rachaduras nas casas.
Gildo Moreira, 45, disse que tinha acabado de chegar de Diadema (SP) para reconstruir a casa dos pais idosos. “Pensei que ia cair na cabeça deles”. A mãe, Lurdes, relembra: “Quando passava aquele rolo de arrumar a estrada, a cama estremecia”.
“Foram embora e deixaram o prejuízo aqui”, diz Adilson Pereira, 47. A casa dele, no início da estrada, também ficou com rachaduras após a ampliação da via.
O apelo de que o empreendimento levou empregos à comunidade, segundo Adilson, não compensa os impactos. “Não teve emprego para todo mundo, só para alguns mais jovens”, diz.
Isabel dos Anjos, 75, afirma que não tem paz. “Quando está seco, é poeira demais. Quando está chovendo, fica um lameiro, não consigo andar”.
Aliada ao pó, tem a falta d’água. Apesar dos grandes investimentos na região, a comunidade não recebe água encanada suficiente e as nascentes que a abasteciam estão secando.
À Folha a empresa afirmou que melhorou mais de 75 km de estradas públicas existentes, das quais dizem que os moradores se tornaram “usuários padrão”. Diz ainda que incluiu sinalização de trânsito e quebra-molas para a redução de velocidade, além de blitz —os moradores afirmam que isso não era necessário antes do empreendimento.
Questionada, a PAE não comentou as rachaduras, mas ressaltou que “cumpre rigorosamente as exigências legais para a construção e operação de seus empreendimentos” e faz monitoramento constante do meio ambiente. Os moradores de Lagoa de Bastos, mais afastada das turbinas, dizem que a maioria não recebeu indenizações.
Turbina na janela
Quem mora mais perto das eólicas, na comunidade de Brejão, foi afetado pelas explosões controladas usadas para instalar as turbinas eólicas.
Edimar dos Santos, 48, afirma que o barulho o incomodou na época, e as paredes da casa racharam. Ele diz ter sido um dos poucos moradores de Brejão que não receberam indenização pelo estrago. Quando os trabalhadores da empresa avaliaram os danos, diz, não estava em casa, então perdeu a vez. Reformou sozinho.
Apesar disso, ele reconhece que existem benefícios do empreendimento para a comunidade, como a geração de renda.
Para Valdecy Barbosa, 70, que tem uma turbina eólica no terreno, o parque não mudou a rotina. “Teve um barulhinho de vez em quando, mas dá para ir”, diz. Ele é um dos moradores de Brejão que recebe um valor que varia de R$ 4.000 a R$ 6.000 por mês por abrigar o equipamento —nem todos foram contemplados.
A professora Gislene Moreira, da Uneb (Universidade Estadual da Bahia), membro do Observatório de Conflitos na Chapada Diamantina, afirma que as comunidades mais próximas aos complexos eólicos têm maior resistência em reclamar dos empreendimentos no início.
Por outro lado, a comunidade do começo da estrada, na Lagoa de Bastos, fez cerca de dez protestos para paralisar a ampliação da via, mas não conseguiu, diz Moreira.
Ilza, mãe de Gustavo, não espera indenização pelos impactos da empresa no local e em sua própria vida. “Deixaram muito prejuízo nesse lugar”, diz. “Mas fazer o que? Foram embora. Prometeram Deus e o mundo e não fizeram nada.”
“Enquanto dá rachadura na casa, tem jeito. E a vida de uma pessoa?”, diz.
Era fim de tarde quando Delci subiu no barranco à beira da estrada, explicou o que acontecia, assustou-se com a interferência do segurança da PAE e resolveu mostrar um item. Desceu na vala e achou a sandália de Gustavo. “Para não dizer que é mentira, o chinelo dele está aqui até hoje.”
Série mostra impacto da transição energética em comunidades da Chapada Diamantina, na Bahia
A transição para uma matriz energética renovável, importante para desacelerar a crise climática, afeta a chapada Diamantina, na Bahia, colocando seus moradores no centro de conflitos devido ao desmatamento, pressão em comunidades tradicionais, abertura de estradas e aumento da mineração.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.