Lá no início do Instituto Igarapé, começamos a fazer projetos de tecnologia em segurança pública. Estudamos os melhores casos mundiais para desenvolver ferramentas de aprimoramento do trabalho policial, desde mapeamento digital de hot-spots de crimes a câmeras corporais. Foi assim que, com parceiros, lançamos em 2013 um aplicativo que transformava um smartphone em uma câmera corporal para a polícia.
Batizado de CopCast, o app, testado inicialmente no Rio de Janeiro, em Nairóbi, no Quênia, e na Cidade do Cabo, na África do Sul, foi a primeira experiência de câmera corporal em policiais realizada em países do Sul Global. A ferramenta open source foi compartilhada em outros lugares do mundo e recomendada pela Human Rights Watch em 2016.
Pouco depois, trabalhamos no programa de câmeras corporais da Polícia Militar de Santa Catarina. A avaliação do projeto-piloto realizado em 2018 mostrou uma redução de 61% no uso da força durante a abordagem às pessoas e um aumento de 67,5% no registro de violência doméstica, casos geralmente subnotificados.
As imagens reproduzidas nos últimos dias das violências cometidas pela Polícia Militar em São Paulo foram registradas por outras câmeras, as de segurança nas ruas e as dos smartphones dos cidadãos. Infelizmente, mais de dez anos depois do CopCast, apenas seis estados adotam a câmera corporal em suas polícias, em meio a desmontes como os que, em São Paulo, fizeram retroceder o programa que já foi o mais importante do país.
Há diversos estudos que apresentam os resultados positivos dessa ferramenta. O Ministério da Justiça produziu neste ano uma análise mostrando que as pesquisas brasileiras são unânimes ao apontar reduções acima de 50% no uso da força nas ações policiais com câmeras corporais.
A principal dificuldade para ampliar a implementação desta e outras tecnologias que reforçam a transparência na segurança pública está no uso político das polícias. É um uso perigoso, que alimenta e se alimenta do medo da população –seja da polícia, seja do bandido. Não é de hoje que as polícias têm sido usadas para a manutenção de estruturas de poder calcadas na corrupção e na violência, o que agrava sobremaneira os riscos de nossa democracia e é uma porta de entrada para a infiltração do crime organizado nas instituições.
Um dos fatores para o CopCast ter sido testado no Rio foi a repercussão do desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, em 2013, depois de ser levado por policiais militares para a sede da UPP da Rocinha. O projeto, porém, acabou não escalando por falta de investimento em equipamentos e infraestrutura tecnológica e pelos seguidos escândalos políticos envolvendo governadores do estado.
Os graves casos de São Paulo têm de nos levar da comoção imediata a um salto no tempo perdido.
Nas eleições de 2026, o tema da segurança pública será novamente usado como moeda eleitoral, de um lado, e como contra-ataque, de outro. No meio, estarão não só os Amarildos —que se repetem há décadas no país inteiro— mas todos nós. Passou da hora de, como sociedade, priorizarmos o investimento em infraestrutura e tecnologias corretas para um Brasil mais seguro, com uma polícia menos violenta e menos suscetível a servir de palanque.
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