O Real Digital ou o Drex é a moeda digital brasileira que está sendo desenvolvida pelo Banco Central desde agosto de 2020, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Além de ser regulado e emitido pela autoridade monetária, o Drex terá o mesmo valor e aceitação do real tradicional, assim como as mesmas garantias de segurança, segundo o BC.
Alguns representantes da direita, no entanto, têm defendido que o Drex pode vir a servir como um instrumento de “vigilância estatal” e “censura e controle social”. Outras preocupações são a possível extinção do papel-moeda (“dinheiro vivo”), a segurança cibernética e a exclusão de parcelas da população com pouco conhecimento tecnológico e acesso limitado à internet.
A deputada Júlia Zanatta (PL-SC) é uma das representantes da direita que tem se posicionado contra o Drex e a favor da liberdade econômica da população. Segundo a parlamentar, o Drex é “controle social”. “Uma moeda digital centralizada e controlada pelo Banco Central que pode e será usada para impor restrições ao cidadão brasileiro”, afirmou recentemente.
Em agosto deste ano, a deputada protocolou na mesa da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3341/2024, que proíbe a extinção do papel-moeda em substituição à moeda digital.
Outra iniciativa em andamento da parlamentar é a tentativa de protocolar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para que tanto a implementação do Drex quanto uma eventual extinção do papel-moeda só possam ocorrer após aprovação de maioria qualificada do Congresso Nacional, ou seja, 60% votos dos membros de cada Casa, em dois turnos de discussão e votação.
Em coluna publicada na Gazeta do Povo no dia 7 de outubro, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) também criticou a moeda estatal brasileira. Após comentar decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que “acabou” com o sigilo bancário, o parlamentar afirmou que “não há como escapar para a economia informal se o “sistema” estiver monitorando suas contas bancárias”.
No texto, o parlamentar diz que, como uma espécie de “bitcoin oficial do Estado”, o Drex “dará completa visibilidade ao governo de quem está comprando o que, de quem, por qual valor, onde, em que dia e hora exatos”. Ele ainda conclui que, embora ainda seja opcional, “é óbvio que se tornará obrigatório em um segundo momento, pelo poder de controle total que essa moeda digital dará ao governo”.
Nem todas as visões a respeito do Drex são tão críticas, apesar de alertarem para cuidados que devem ser tomados para sua implementação. Fernando Chertman, professor de Macroeconomia e Economia Matemática da Faculdade Belavista, avalia que a implementação de uma moeda digital nacional, como o Drex, pode ser benéfica ao melhorar a eficiência financeira e dar novas ferramentas ao Banco Central.
“Porém, sua implementação deve ser feita com cautela, garantindo transparência, segurança e privacidade para evitar riscos de abuso de poder e exclusão financeira”, diz.
A Gazeta do Povo questionou o Banco Central sobre seu posicionamento a respeito das principais críticas ao Drex, mas a instituição não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
O que é o Drex?
O Drex é uma CBDC (do inglês Central Bank Digital Currency), ou seja, uma “moeda digital emitida por um banco central”. No caso, uma versão virtual da moeda brasileira, o real. Embora possa se parecer com outros ativos digitais como o Bitcoin e o Ethereum, há um aspecto principal que as difere: a centralização ou descentralização.
De acordo com a página do BC, os serviços financeiros serão liquidados pelos bancos dentro da plataforma do Real Digital disponibilizada pelo Banco Central, que é a autoridade central. Ou seja, o Drex é um ativo digital centralizado na figura do Banco Central e dos bancos que integrarem essa rede. No caso do Bitcoin, por exemplo, o criptoativo é descentralizado, ou seja, não há uma autoridade central que o regule.
O BC ainda informa que a plataforma do Drex é desenvolvida utilizando a tecnologia de registro distribuído (Distributed Ledge Technology, ou DLT). Essa tecnologia permite que o registro de quaisquer transações e informações seja compartilhado por vários participantes em uma rede.
No caso do DLT, a distribuição das informações é uma garantia para que todas as partes tenham acesso idêntico e atualizado aos dados, o que evitaria a dependência de uma autoridade central, o que não ocorre com o Drex. Além disso, esse padrão dificulta que sejam feitas quaisquer alterações posteriores nas transações, o que aumenta a segurança contra fraudes e adulterações.
No caso do Drex, para ter acesso à plataforma ou sistema no qual serão feitas as operações, o usuário precisará de um intermediário financeiro autorizado – um banco, por exemplo. Esse intermediário será o responsável por fazer a conversão dos valores existentes na conta corrente comum do usuário para sua carteira digital.
Uma das possibilidades destacadas pelo BC no desenvolvimento do Real Digital são os contratos inteligentes digitais. Nessa modalidade, a compra de um bem, como um automóvel, por exemplo, só será concluída pelo sistema quando o vendedor oferecer todos os papéis para a transferência do veículo e o comprador tiver disponível todo o valor para realizar a compra.
Redução de custos, inclusão financeira e controle da política monetária e fiscal
De acordo com Fernando Chertman, a implementação das CBDCs traz algumas vantagens, como a redução de custos do sistema financeiro. Isso ocorreria principalmente no caso de transferências internacionais, que hoje enfrentam barreiras como altas taxas de conversão e o tempo de processamento.
No Brasil, esses custos são particularmente altos, assinala o professor. “E uma CBDC bem integrada poderia simplificar as operações e facilitar o uso de tecnologias como contratos inteligentes, acelerando pagamentos e simplificando auditorias e rastreamento”, diz.
Ele avalia que, caso haja ampla adoção do Drex, a população sem conta em banco pode se beneficiar, já que a moeda digital pode facilitar pagamentos com baixa ou nenhuma tarifa e criar incentivos para pequenos negócios.
Do ponto de vista macroeconômico, o Real Digital pode fazer com que o Banco Central tenha mais controle sobre a política monetária. “Dependendo do design da CBDC, o Banco Central poderia ajustar taxas diretamente sobre saldos digitais ou, em cenários extremos, promover políticas fiscais via transferências diretas, como auxílio emergencial, com mais facilidade e menor custo”, avalia.
CBDCs trazem desafios em relação a ciberataques, privacidade, censura e exclusão financeira
No entanto, são exatamente algumas dessas características e facilidades proporcionadas pelo Drex que têm trazido preocupação para parte da direita e mesmo para analistas e especialistas em ativos financeiros digitais.
O professor Chertman avalia que um dos riscos das CBDCs é a perda da privacidade, pois, em um sistema centralizado, a autoridade teria potencial visibilidade e controle sobre todas as transações.
“Isso levanta preocupações legítimas de abusos, como congelamento de contas ou restrições financeiras para controle social ou censura. No Brasil, que enfrenta desafios quanto à confiança institucional, essa é uma preocupação válida, e o Banco Central precisaria de um modelo de CBDC que garanta a proteção dos dados dos cidadãos”, avalia.
Em sua página do Drex, o BC afirma que a moeda digital brasileira está sendo desenvolvida para garantir a segurança jurídica nas operações e os princípios e regras de privacidade e segurança previstos na lei brasileira, em especial na lei do sigilo bancário e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Chertman ainda avalia que o modelo da CBDC pode trazer desafios de segurança, já que a centralização torna o sistema suscetível a ciberataques. Essas vulnerabilidades de segurança poderiam causar instabilidade e afetar a confiança no próprio sistema.
Outro risco seria a exclusão de parte da população que não tem acesso à tecnologia. Se não for bem pensada, a implementação pode fazer com que parcelas da população, por exemplo, que já dispõem de acesso limitado à internet, não consigam utilizar o Drex.
Desenvolvedores constataram que Drex permite controle total da vida financeira do usuário
Em agosto de 2023, o desenvolvedor especialista em blockchain (uma tecnologia utilizada em criptomoedas) Pedro Magalhães descobriu que o Real Digital permitia acesso irrestrito da autoridade central, no caso o BC, aos ativos dos usuários.
Ele testou o projeto-piloto da moeda digital disponibilizada pelo próprio Banco Central e descobriu que o modelo permite que a autoridade do sistema faça transferências de quantias para outras contas, desconte impostos diretamente dos rendimentos, decida por quanto tempo os recursos podem ser guardados ou simplesmente congele todo o patrimônio digital de um usuário.
O sistema do Drex também não apresentava quaisquer restrições para a criação de novas moedas digitais, o que equivaleria a imprimir notas até mesmo sem lastro. Outro aspecto importante é que o projeto-piloto também oferecia uma capacidade praticamente instantânea de rastreamento e acesso a toda e qualquer informação de seus usuários por parte da autoridade central.
A descoberta de Magalhães foi primeiramente divulgada pelo Portal do Bitcoin, que pediu a outros desenvolvedores que confirmassem os achados iniciais, e a resposta foi afirmativa. A Gazeta do Povo reportou os fatos naquela ocasião e questionou o BC a respeito, mas não obteve resposta.
Moedas digitais tradicionais são descentralizadas
Tais possibilidades verificadas no Real Digital inexistem em criptoativos como o Bitcoin ou o Ethereum, por exemplo. Em primeiro lugar, porque suas redes ou sistemas são descentralizados e, portanto, não há uma autoridade central que possa tomar todas essas decisões.
Além disso, as transações só podem ser realizadas dentro das regras do sistema e com a validação de um “nó”, uma espécie de instância garantidora da rede. De acordo com Victor Valente, advogado e presidente da Comissão de Blockchain e Criptoativos da OAB de Niterói (RJ), o Bitcoin, que ele considera ser o estado da arte das criptomoedas, tem cerca de 54 mil “nós”.
Ou seja, qualquer operação só pode ser feita dentro das regras estabelecidas no sistema, o que, por sua vez, permite a validação dos “nós”. No entanto, no caso do Drex, Valente alerta que, além das amplas possibilidades permitidas pela configuração do sistema, há pouquíssimos “nós”.
São instituições já estabelecidas no mercado financeiro, incluindo grandes bancos e cooperativas de crédito que se associaram para participar do desenvolvimento do Real Digital junto ao BC.
Ou seja, além das amplas possibilidades que o sistema do Drex oferece, somente poucas instituições atuarão como “garantidoras” das operações que ocorrerem na rede, o que geraria ainda mais centralização e possibilidade de controle.
Cidadão comum teria pouco a ganhar com o Drex
De acordo com Pedro Magalhães, as problemáticas que encontrou no modelo original do Real Digital ainda permanecem. “Os principais interessados são os reguladores e os bancos, enquanto o cidadão comum tem pouco a ganhar com o Drex em termos de benefícios práticos”, afirma.
O desenvolvedor argumenta que, conforme o modelo, o BC terá poderes ampliados para monitorar e controlar as atividades financeiras de todas as pessoas que usarem a CBDC brasileira. Em relação aos contratos inteligentes, ainda assinala que só poderão ser implementados por grandes bancos e consórcios bancários, os “nós” do sistema.
Victor Valente ainda destaca que os contratos estabelecidos entre o BC e as instituições – que serão os “nós” do sistema e que estão auxiliando a desenvolver suas funcionalidades – não são transparentes, ou seja, não se sabe as bases reais dentro das quais foram acordadas essas parcerias.
Ou seja, ao contrário do que ocorre em redes de moedas virtuais, nas quais os usuários têm autonomia e liberdade para gerir suas carteiras sem intermediações institucionais, o Drex possibilitaria um amplo controle de seus ativos pela autoridade financeira ou pelas instituições por ela designadas sobre os usuários e seus ativos.