Fui ao Parque do Ibirapuera ver a árvore de Natal. Às 19h30, as 210 mil lâmpadas foram acesas, e a árvore de 57 metros de altura brilhou contra o céu escuro do começo da noite paulistana. Desde o final da tarde, famílias inteiras esparramavam-se pelo gramado ralo. Algumas mais precavidas, estendiam toalhas para se sentar. Era difícil calcular quantas pessoas estavam lá, mas havia tanta gente que faltava espaço.
Sob o brilho da árvore roxa, pensei: isso é religioso ou cultural? A expansão do cristianismo pela Europa tratou de se adaptar ao costume ancestral de reverenciar árvores no solstício de inverno no hemisfério norte, a época mais escura do ano. É atribuído a São Bonifácio, missionário cristão do século VIII, o uso do pinheiro, cuja forma triangular representaria a Trindade. Dentre outros acréscimos cristãos, uma estrela foi colocada no topo para lembrar a estrela de Belém.
Nas últimas semanas, tivemos vários debates sobre as fronteiras entre o que é cultural e o que é religioso. Pode crucifixo em tribunais? Pode Caetano Veloso cantar música gospel num show? Pode Claudia Leitte trocar, na letra da música, “Iemanjá” por “Yeshua” (Jesus em aramaico)?
A árvore de Natal do Ibirapuera é roxa porque seu patrocinador é o Nubank. No chão, em letras brancas gigantes, está a marca “Nu”. Pode uma árvore de Natal ostentar propaganda de um banco?
Natal e comércio estão entrelaçados há muito tempo. Desde os ambulantes vendendo pipoca para as famílias no parque até as compras de presentes parceladas nos cartões de crédito, é fato que comércio e Natal estão tão unidos quanto quis o Concílio de Calcedônia (451) ao decretar a união entre a natureza humana e a divina de Jesus, conhecida na teologia como união hipostática.
Não tenho nada contra a propaganda do banco que patrocinou a montagem da árvore. Os juros cobrados dos clientes tornaram possível tal generosidade financeira. Também não penso que fosse necessário ter qualquer menção ao nome de Jesus na árvore, uma vez que ela é, em si, um símbolo associado ao seu nascimento. Mas, como cristão, tenho um questionamento.
Quando a Urbia, administradora do parque, e o Ministério da Cultura fazem a narração nos alto-falantes espalhados pelo bosque do “Natal do Ibirapuera” e não mencionam nada sobre o nascimento de Jesus, isso me parece uma grande trapaça histórica.
José não encontrou em Belém uma hospedaria que pudesse abrigar sua esposa Maria para dar à luz ao menino Jesus. Passaram-se dois milênios. Deixei o Parque do Ibirapuera com a sensação que mais uma vez a história natalina se repetia, pois não havia lugar para o menino Jesus nos gigantescos 1.584.000 metros quadrados na parte mais rica da São Paulo.
A árvore do cristianismo é tão alta e com raízes tão profundas que não precisa de “mimimi” para sua defesa. O espetáculo natalino do Ibirapuera não deixaria de ser cultural para se tornar religioso se as narrativas bíblicas sobre o nascimento de Jesus fossem mencionadas. Seria, isso sim, mais rico culturalmente assumindo que Jesus e Natal são inseparáveis.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss ensina que, entre outras coisas, as trocas de presentes marcam a passagem do estado de natureza (selvageria) para o estado de cultura. Defendo que precisamos de mais trocas e de mais generosidade nas permutas entre religião e cultura.
Que a cultura possa se apropriar de elementos religiosos, como a árvore de Natal, e que as religiões possam aparecer em espaços culturais sem que haja gente torcendo o nariz — como quando Caetano canta “Deus cuida de mim”, por exemplo. Todavia, que haja generosidade e respeito histórico às origens de cada símbolo religioso.