Pode me chamar de exagerado à vontade, mas não consegui deixar de emocionar ao ver uma imagem aparentemente boba: a pontinha de um dedo humano, em cima da qual repousa um objeto minúsculo, pontudo e cinza-escuro. Trata-se do bico de uma ave recém-saída do ovo, cuja curta vida se encerrou há 73 milhões de anos, onde hoje é o norte do Alasca.
O biquinho fossilizado é só um exemplo de uma amostra muito maior de filhotes e adultos, pertencentes a vários grupos diferentes de aves, as quais parecem ter transformado o Ártico da Era dos Dinossauros num gigantesco ninhal durante os milhões de anos finais da Era dos Dinossauros. Aliás, exatamente do mesmo jeito que ainda acontece em ambas as regiões polares do planeta hoje.
A conclusão vem de um belíssimo estudo paleontológico publicado nesta semana na revista Science, encabeçado por Lauren Wilson, aluna de doutorado da Universidade Princeton (EUA). Ela e seus colegas estudaram sedimentos da formação Prince Creek, que vão a até 85 graus de latitude Norte. Ao peneirar o que escavavam e analisar tudo com cuidado em laboratório, descobriram uma rica fauna de aves, superficialmente semelhantes a gaivotas, patos e gansos de hoje.
OK, o mundo do fim do período Cretáceo era bem mais quente que o nosso, embora temperaturas negativas (nem de longe tão intensas quanto as atuais) fossem comuns no inverno do Ártico mesmo então. Ademais, um elemento da região não mudou muito de lá para cá: as intermináveis horas diárias de escuridão durante boa parte do ano. Então, o que essas avezinhas estavam fazendo ali?
Bem, acontece que o reverso da moeda, nas zonas polares, é que os curtos períodos de primavera e verão tendem a concentrar uma abundância de recursos alimentares, durante longuíssimos dias (a contraparte da longa noite invernal).
Isso significa que aves migratórias, capazes de ir até esses recursos no momento certo, têm a chance de encher o bucho à vontade, botar seus ovos, alimentar filhotes com toda essa fartura e voltar às suas moradas costumeiras, de clima bem mais ameno, de forma precisamente sincronizada. Outras, é claro, adaptaram-se à vida 100% polar, mas essas tendem a ser minoria.
Com base apenas nos fósseis analisados no novo estudo, não é muito simples determinar se as aves identificadas viviam ali em tempo integral ou adotavam a estratégia reprodutiva migratória. Mas a relativa abundância de filhotes recém-nascidos sugere que a segunda opção talvez seja um pouco mais provável.
Algumas dessas aves primitivas ainda tinham dentes no bico, herança de seu parentesco próximo com os dinossauros carnívoros de pequeno porte; outras já contavam com o bico desdentado das espécies atuais e podem ter sido as mais antigas representantes desse grupo achadas até agora –faltam mais fósseis para confirmar a ideia.
E, é claro, elas estavam cercadas por dinossauros não avianos de grande porte, esses sim moradores dos domínios polares em tempo integral naquela época.
Imagine a cena. Escute, com os ouvidos da imaginação, o bater das asas e os piados dos filhotes. Faz muito, muito tempo que o nosso mundo é um lugar maravilhoso. Que continue assim por muitos milhões de anos, enquanto o Sol brilhar.
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