Toda vez que estudos genômicos demonstram a natureza essencialmente miscigenada dos brasileiros –coisa que, aliás, muitas vezes não depende tanto da cor da pele–, algumas pessoas logo reagem de um jeito que me assusta um pouco. É uma visão que aparece em comentários de leitores desta Folha e de diversos outros veículos de imprensa por aí. “Tá vendo?”, dizem alguns desses leitores. “Isso prova que cotas raciais são uma balela.”
O raciocínio por trás dessa conclusão é compreensível, mas também é um dos exemplos mais desanimadores de como vieses previamente estabelecidos produzem aberrações conceituais. Esta coluna é uma tentativa de desmontar tal lógica.
O primeiríssimo passo aqui, que deveria ser também o mais óbvio, é que o preconceito racial brasileiro, razão pela qual as cotas existem, não enxerga genótipo. Ou seja, ninguém anda pelas ruas de São Paulo ou de Salvador com os 3 bilhões de pares de letras químicas do seu DNA (e a interpretação delas em termos de ancestralidade) estampadas na testa.
Em vez de discriminar por genótipo, o racismo brasileiro dos últimos séculos sempre funcionou na base do fenótipo –vale dizer, com base na aparência. Não só a pele mais escura como também a textura do cabelo, o formato do nariz e os detalhes dos lábios, entre outros sinais que indicam ascendência africana ou indígena, continuam sendo usados como motivo para olhar alguém de cima a baixo e, conforme for, já ir chamando o segurança. Qualquer brasileiro que negue isso não conhece o país onde vive.
Imaginemos que esse primeiro argumento não convença. Há quem se apegue ao fato de que, em média, pouco menos de 60% do DNA dos brasileiros atuais é de origem europeia, com variação modesta de um estado para o outro (da ordem de 10% para mais ou para menos).
O problema é considerar que isso é fruto de uniões igualitárias entre os diferentes componentes étnicos na população brasileira. A pista definitiva da assimetria brutal entre esses componentes vem dos números da imigração e do tráfico de escravizados, de um lado, e dos dados sobre o cromossomo Y, a marca genômica da masculinidade transmitida de pai para filho homem, de outro.
Arredondando, vamos considerar que havia 10 milhões de indígenas no Brasil antes da chegada dos portugueses. Os cálculos mais confiáveis indicam que, de 1500 para cá, cerca de 5 milhões de europeus vieram para o nosso território, e que 5 milhões de africanos foram arrastados para este lado do Atlântico pelo tráfico negreiro.
Ocorre, porém, que 71% dos homens brasileiros carregam um cromossomo Y europeu. Outros 25,51% têm um Y africano e 2,4% um cromossomo Y indígena (os de origem asiática, principalmente japoneses, são 1%.)
Repare que a conta não bate nem de longe. Os homens de origem europeia estavam tendo proporcionalmente muito mais filhos do que os não brancos. E provavelmente com mais de uma mulher, servindo-se de negras e indígenas como concubinas enquanto, sempre que podiam, tinham também uma esposa oficial europeia, ou que ao menos pudesse “passar” como branca em termos de fenótipo.
Não há contradição nenhuma, portanto, entre carregar DNA europeu e ser discriminado pela história de desigualdade associada ao fenótipo materno. Pode-se não gostar das cotas, mas é essa trajetória que elas tentam remediar.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.