Creio que, para a maioria das pessoas, número é aquilo que escrevemos com os símbolos 1, …, 9 e 0. Mas isso não pode estar certo: os romanos (e muitos outros) usaram números durante séculos e eles não conheciam os algarismos indo-árabes que usamos hoje. O que diferencia os números de outras formas de comunicação, como as palavras, não é como os representamos e sim o que podemos fazer com eles ou, melhor, o que eles podem fazer por nós.
Para começar, números (reais) podem ser ordenados do menor para o maior. Essa característica eles partilham com as palavras, que também podem ser ordenadas, por exemplo, alfabeticamente. Mas números são muito mais poderosos, pois são capazes de gerar novos números, por meio das operações matemáticas —adição, subtração, multiplicação, divisão etc— que ninguém mais tem. É isso que caracteriza o que é ser número. Assim, há muitas coisas que escrevemos com os algarismos 0, 1, …, 9 mas nem por isso merecem ser chamadas “números”.
Números de telefone são um bom exemplo. Ordená-los não tem nenhum sentido: se o seu é 25295000, e o meu é 25295001, isso não quer dizer que a sua linha foi criada antes da minha, muito menos que o meu telefone é maior do que o seu. Pior, se somarmos os dois o resultado não significa nada e pode nem ser um número de telefone válido!
O modo como, ao longo da história, desenvolvemos conjuntos cada vez maiores de números a partir dos naturais foi sempre de modo a ampliar o escopo das operações, para atender a necessidades concretas. As frações para que seja sempre possível dividir (exceto por zero: aí não dá mesmo!). Os negativos para que sempre dê para subtrair. Os irracionais e, mais tarde, os imaginários, para que sempre exista raiz quadrada.
Um ponto crucial é que extensões do conceito de número não podem ser feitas de qualquer maneira, elas precisam preservar as propriedades fundamentais das operações. Por exemplo, aprendemos na escola que a multiplicação dos naturais é comutativa: o resultado não depende da ordem dos fatores. Pois bem, a comutatividade continua valendo para a multiplicação de frações, de números reais e até de números complexos.
Volta e meia alguém me escreve dizendo que descobriu que a regra “menos vezes menos é mais” —o produto de dois números negativos é positivo— está errada, e se propondo a desenvolver (com financiamento do Impa…) a “teoria correta” dos números negativos. Ora, a boa teoria é aquela em que continuam valendo para todos os inteiros as propriedades fundamentais da adição e multiplicação dos números naturais, como a comutatividade e a distributividade. E essas propriedades implicam que “menos vezes menos é mais”, ponto final.
Então, quando escrevi aqui recentemente que o matemático britânico John Conway (1937 – 2020) descobriu novos números, os surreais, o que quis dizer foi que ele encontrou um conjunto muito maior do que o dos números reais onde ordenação, operações e suas propriedades ainda valem. A saga dos números vai parando por aí: os surreais são o maior conjunto de números que existe! Explicarei na semana que vem.
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