No início dos anos 2000, um coronavírus que infectava morcegos passou para cães-guaxinins e outros mamíferos selvagens no sudoeste da China. Alguns desses animais foram vendidos em mercados, onde o vírus saltou novamente, desta vez para humanos. O resultado foi a pandemia de Sars, que se espalhou por 33 países e causou 774 mortes.
Alguns meses depois, cientistas descobriram o coronavírus em mamíferos conhecidos como civetas-de-palmeira vendidos em um mercado no centro do surto.
Em um estudo publicado nesta quarta-feira (7), pesquisadores compararam a história evolutiva da Sars com a da Covid-19. Eles analisaram os genomas dos dois vírus por trás das pandemias, juntamente com 248 coronavírus relacionados em morcegos e outros mamíferos.
O virologista Jonathan Pekar, da Universidade de Edimburgo e autor do novo estudo, disse que as histórias dos dois coronavírus seguiram caminhos paralelos. “Na minha opinião, eles são extraordinariamente semelhantes.”
Em ambos os casos, Pekar e seus colegas argumentam que um coronavírus saltou de morcegos para mamíferos selvagens no sudoeste da China. Em um curto período de tempo, comerciantes levaram os animais infectados por centenas de quilômetros até mercados urbanos, e o vírus chegou a humanos.
“Quando você vende animais selvagens no coração das cidades, você terá uma pandemia de tempos em tempos”, afirmou o biólogo evolutivo Michael Worobey, da Universidade do Arizona, também autor do novo estudo.
O estudo surge em um momento em que a origem do vírus voltou ao debate. No mês passado, a Casa Branca criou uma página na web chamada “Vazamento de Laboratório: A Verdadeira Origem da Covid-19”, afirmando que a pandemia não foi resultado de um episódio de transbordamento do mercado, e sim de um acidente em um laboratório em Wuhan, China.
Na última sexta (2), em sua proposta de orçamento, a Casa Branca descreveu o vazamento de laboratório como confirmado e justificou um corte de US$ 18 bilhões (R$ 103 bilhões) nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), em parte pelo que descreveu como a “incapacidade da agência de provar que suas subvenções ao Instituto de Virologia de Wuhan não foram cúmplices em tal possível vazamento”.
O governo chinês respondeu e negou que a Covid tenha sido provocada por um vazamento de laboratório em Wuhan. Além disso, levantou a possibilidade de que o vírus tenha saído de um laboratório de biodefesa nos Estados Unidos.
“Uma investigação completa e aprofundada sobre as origens do vírus deve ser conduzida nos EUA”, dizia o comunicado.
O virologista Sergei Pond, da Universidade Temple, não considera a origem da Covid como algo resolvido. Mas ele teme que a linguagem incendiária dos dois governos dificulte a investigação —e o debate— sobre o tema.
Nas primeiras semanas da pandemia de Covid, no início de 2020, circularam boatos de que o Sars-CoV-2 era uma arma biológica criada pelo Exército chinês. Um grupo de cientistas que analisou os dados disponíveis na época rejeitou essa ideia. E, embora não pudesse descartar um vazamento acidental de laboratório, apontou como mais provável uma origem natural.
Enquanto Worobey e outros cientistas começaram a estudar a origem da Covid, agências dos EUA também buscavam respostas.
As avaliações têm sido divergentes. O FBI e a CIA apoiam a hipótese de um escape do Instituto de Virologia de Wuhan, mas com baixo grau de certeza. O Departamento de Energia americano tende, com baixa confiança, para a hipótese de vazamento noutro laboratório em Wuhan. Outras agências inclinam-se para uma origem natural.
As agências não tornaram públicas suas evidências ou análises, então os cientistas não podem avaliar a base de suas conclusões.
Worobey e outros pesquisadores publicaram uma série de artigos em revistas científicas. Ao longo do processo, Worobey se convenceu de que a pandemia de Covid começou no Mercado de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan. “Cientificamente, é tão claro quanto o HIV ou a gripe espanhola“, disse o biólogo, referindo-se a duas doenças cujas origens ele também estudou.
Para o novo estudo, Worobey, Pekar e seus colegas compararam os genomas de 250 coronavírus, usando suas similaridades e diferenças genéticas para determinar seus relacionamentos. Eles conseguiram reconstruir a história dos coronavírus que causam tanto a Sars quanto a Covid-19, o Sars-CoV e o Sars-CoV-2.
Os ancestrais de ambos os vírus circularam em morcegos em grande parte da China e em países vizinhos por centenas de milhares de anos. Nos últimos 50 anos, aproximadamente, seus ancestrais diretos infectaram morcegos que viviam no sudoeste chinês e no norte do Laos.
Conforme os coronavírus infectavam os morcegos, às vezes acabavam dentro de uma célula com outro coronavírus. Quando a célula produzia novos vírus, acidentalmente criava híbridos que carregavam material genético de ambos os coronavírus originais.
“Esses não são eventos antigos”, afirmou o virologista David Rasmussen, da Universidade Estadual da Carolina do Norte, que não participou do novo estudo. “Essas coisas estão acontecendo o tempo todo. Esses vírus são verdadeiros mosaicos.”
Em 2001, um ano antes de a pandemia de Sars começar na cidade de Guangzhou, os pesquisadores descobriram que o Sars-CoV passou por sua última mistura genética em morcegos. Só após essa última recombinação o vírus poderia ter evoluído para um patógeno humano. E, como Guangzhou está a centenas de quilômetros da região ancestral do Sars-CoV, os morcegos não teriam conseguido levar o vírus para a cidade em tão pouco tempo.
Os pesquisadores geralmente concordam que os ancestrais do Sars-CoV infectaram mamíferos selvagens que posteriormente foram vendidos em mercados ao redor de Guangzhou. Alguns meses após o início da pandemia de Sars, cientistas descobriram o Sars-CoV em civetas-das-palmeiras e em outros mamíferos selvagens à venda nos mercados.
Os cientistas encontraram um padrão semelhante quando se voltaram para o Sars-CoV-2. A última recombinação em morcegos ocorreu entre 2012 e 2014, a várias centenas de quilômetros a nordeste, em Wuhan.
Isso também representou um afastamento substancial da região onde os ancestrais do vírus haviam circulado. Mas foi comparável à jornada que o Sars-CoV fez, graças ao comércio de animais silvestres.
Defensores da hipótese de vazamento de laboratório têm destacado a longa distância entre Wuhan e os locais onde os parentes mais próximos do Sars-CoV-2 foram encontrados. Eles argumentam que, se os morcegos não puderam voar para a região ao redor de Wuhan e infectar mamíferos selvagens lá, então cientistas devem ter coletado o coronavírus de morcegos no sudoeste da China e modificado-o em seu laboratório, de onde escapou.
Cientistas americanos criticaram o Instituto de Virologia de Wuhan por supostas medidas de segurança inadequadas em seus experimentos com coronavírus. Mas ninguém apresentou evidências de que o progenitor do Sars-CoV-2 estava no instituto antes da pandemia. O novo estudo de Worobey e seus colegas mostra que os coronavírus de morcegos podem percorrer longas distâncias sem a ajuda de cientistas, por meio do comércio de animais silvestres.
Os pesquisadores dizem que essas descobertas vão ao encontro de estudos que publicaram em 2022 apontando o Mercado de Frutos do Mar de Huanan em Wuhan como o local onde a pandemia de Covid teve início.
No local, eram vendidos mamíferos selvagens, foram registrados muitos casos iniciais de Covid e houve a coleta de diferentes cepas de Sars-CoV-2 com mutações distintas. Worobey e seus colegas argumentaram que o vírus havia se espalhado duas vezes a partir de mamíferos selvagens no mercado.
Marc Eloit, ex-diretor do Laboratório de Descoberta de Patógenos do Instituto Pasteur em Paris, disse que o novo estudo foi significativo por fornecer uma imagem clara de onde veio o Sars-CoV-2.
Mas ele também observou que o coronavírus era marcadamente diferente de seus parentes mais próximos conhecidos em morcegos. Depois de se separar desses vírus, ele deve ter sofrido mutações ou passado por recombinação para se tornar bem adaptado à disseminação em humanos.
“Mantenho que a possibilidade de um evento de recombinação —seja acidental ou deliberado— em um ambiente laboratorial permanece tão plausível quanto a hipótese de emergência via um hospedeiro intermediário no mercado”, disse ele.
Eloit e outros cientistas concordaram que encontrar uma forma intermediária do Sars-CoV-2 em um mamífero selvagem seria um argumento convincente para um transbordamento natural. As autoridades chinesas examinaram alguns animais no início da pandemia e não encontraram o vírus neles.
No entanto, os vendedores de animais selvagens no mercado de Huanan removeram seus animais das barracas antes que os cientistas pudessem estudá-los. E, quando a China interrompeu a venda de animais selvagens, os criadores sacrificaram seus animais.
“Há uma grande peça faltando, e você não pode contornar isso”, afirmou Pond.