Conheci John Conway (1937 – 2020) pessoalmente em Lisboa em 2004. Estávamos dando cursos num encontro de estudantes portugueses promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian. Um dia, no jantar, parabenizei-o pela palestra plenária que dera dez anos antes no Congresso Internacional de Matemáticos de Zurique, a apresentação mais divertida que eu já assisti em qualquer tema.
Para meu choque, Conway explicou que um par de meses antes tentara o suicídio: “Aquela palestra foi a primeira coisa que fiz depois de sair da clínica. Decidi que divertir-me era tudo o que importava”. A revelação foi constrangedora, mas me ensinou algo sobre um dos personagens mais ricos que a comunidade matemática já teve.
Por volta de 1970, Conway estava interessado no jogo oriental Go e percebeu que para descrever os diferentes casos de finais de partida (“endgame”) seria útil introduzir um certo tipo de código, que o amigo Donald Knuth chamou “números surreais”, em livrinho que publicou em 1974.
“No princípio era o vazio e Conway começou a criar números”, explica Knuth, em estilo bíblico. “E Conway disse: ‘Que haja duas regras que darão origem a todos os números, grandes e pequenos. A primeira regra será que cada número corresponde a um par de conjuntos de números previamente criados, tais que todo elemento do conjunto da esquerda é menor do que qualquer elemento do conjunto da direita.’ E Conway viu que essa regra era boa.”
O primeiro número foi criado usando o conjunto vazio {} tanto na esquerda como na direita: ele foi representado por ({},{}) e foi chamado “0” (zero). E esse foi o dia zero. E no dia seguinte Conway criou dois números, ({0},{}) e ({},{0}), e ele os chamou “1” (um) e “–1” (menos um). E assim gerou sucessivamente todos os inteiros: ({1},{}) = 2, ({},{–1}) = –2, ({2},{}) = 3, …; e todas as frações: ({0},{1}) = 1/2, ({-1},{0}) = –1/2, ({0},{1/2}) = 1/4, …; e, a partir delas, todos os números irracionais.
Até aí é mera recriação dos números (reais) conhecidos. Mas o ponto é que a regra de Conway produz muitos outros números, inteiramente novos. Por exemplo, ({0, 1, 2, 3, 4, …},{}) é um número surreal maior do que todos os inteiros, o que não existe entre os reais. Poderíamos chamá-lo “∞” (infinito), mas entre os surreais há muitos infinitos diferentes, todos os que Georg Cantor definiu. Então, precisamos de nomes distintos para eles: este aqui é chamado “ω” (omega).
Também existem surreais infinitamente pequenos, tais como (0,{1, 1/2, 1/3, 1/4, …}), que é chamado “ε” (epsilon): ele é maior do que zero, mas menor do que todos os números reais positivos. Os infinitamente pequenos remontam à Grécia antiga e foram muito usados informalmente nos primórdios do cálculo por Leibniz e outros. Mas sempre foram vistos com suspeita porque não existem (entre os reais) números maiores do que zero e menores do que todos os positivos. Ao incorporá-los nos surreais, Conway permitiu justificar rigorosamente esses antigos argumentos informais.
“E a segunda regra do Conway, ele esqueceu?”
Fica para a semana que vem, querida leitora: ainda falta explicar por que os surreais merecem ser chamados de números.
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