A recente pesquisa publicada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e pela Umane apresenta uma excelente análise do setor privado de saúde no Brasil. Talvez, pela primeira vez neste país, sejam desveladas as luzes e as sombras desse segmento, desde a fundação do Sistema Único de Saúde (SUS) até a atualidade. Os nove estudos originais que fundamentam o trabalho, com diferentes abordagens e perspectivas, abrangem todos os temas e elementos necessários para obter um quadro completo da situação, para apontar os desafios futuros e para propor soluções e enfoques viáveis e sustentáveis.
A pesquisa aponta para graves fragilidades e vulnerabilidades do setor privado de saúde em várias dimensões. Chama a atenção a heterogeneidade dos perfis dos atores envolvidos, onde grandes empresas multinacionais dividem o mercado com clínicas populares pequenas e precárias, passando por muitas outras categorias intermediárias.
Os planos de saúde, preocupados em limitar a explosão de demandas de serviços assistenciais (cada dia mais custosos), operam na mesma praça que os provedores, cujo objetivo é vender o maior número possível de consultas e procedimentos. Mesmo que planos e prestadores busquem a mesma finalidade — o lucro —, eles o perseguem por caminhos totalmente opostos. Esta irracionalidade estrutural do setor privado (impossível chamar de sistema algo tão segmentado) favorece episódios de conflitos de interesse e abre brechas para comportamentos oportunistas ou até fraudulentos por parte dos atores envolvidos (prestadores, operadoras e usuários). Como resultado, os prestadores tendem a expandir indefinidamente a oferta de serviços, especialmente os de alto custo, ao ponto do Brasil ser o país com a maior disponibilidade de recursos por número de beneficiários de planos privados, junto com uma crescente capacidade ociosa. Para dar um único exemplo, a taxa de ressonâncias magnéticas per capita da saúde suplementar do Brasil em 2021 foi o dobro daquela dos países da OCDE e quase dez vezes mais alta do que no SUS.
Essas e outras observações sobre os problemas que afetam o setor privado de saúde levam os autores a afirmarem que: “este desalinhamento leva à sobreutilização de serviços, aumento de custos e ineficiência na alocação e no uso de recursos”. Essa situação de desequilíbrio e de superposição de estratégias entre os atores do setor privado é favorecida por uma regulação insuficiente e por graves lacunas de governança por parte das instituições públicas competentes.
Planos de saúde: modelo de atenção focado na doença
É nossa opinião que esta grave situação se origina do fato de que os planos de saúde utilizam um modelo de atenção inadequado para responder de forma efetiva à demanda dos usuários. Nesse modelo, completamente voltado à assistência médica, na maioria dos casos o acesso aos serviços pode se dar somente mediante consulta a um especialista ou procurando um pronto atendimento. As atividades de prevenção e promoção da saúde são limitadas e secundárias. Desta forma, a atenção é reativa, episódica e fragmentada, centrada na doença, tornando impossível estabelecer um vínculo, uma ponte permanente que garanta a continuidade do cuidado e seu foco na pessoa. A incessante busca por especialistas por parte dos afiliados (que querem “usar” o plano), mesmo para patologias comuns que não precisam de atenção complexa, leva a um excesso de diagnósticos e, consequentemente, de tratamentos desnecessários que, além de gerar enormes desperdícios, expõe as pessoas a episódios iatrogênicos, ou seja, doença ou complicações causadas por erros clínicos e cuja atenção precisará de mais cuidados e gastos.
Mais do mesmo não vai conseguir inverter esse ciclo vicioso. Uma transformação só será possível se os planos mudarem o próprio modelo de atenção, tirando o foco do hospital e da doença e dirigindo-o para as pessoas. Essa transformação tem o duplo objetivo de regular os fluxos assistenciais (para evitar o uso desnecessário da rede especializada e os riscos correspondentes) e de construir um vínculo permanente entre a pessoa e os serviços, que fortaleça as ações de promoção e prevenção e permita um cuidado continuado, humanizado e atento ao contexto no qual as pessoas vivem.
Foco na Atenção Primária poderia otimizar os fluxos assistenciais na saúde privada
Esses objetivos podem ser alcançados adotando um modelo inspirado na Estratégia de Saúde da Família (ESF), na qual uma equipe de saúde multidisciplinar, coordenada por um especialista em medicina de família e comunidade, assume a responsabilidade sanitária de um determinado número de pessoas e famílias. As equipes precisam trabalhar em condições razoáveis de infraestrutura, equipamento e logística.
De acordo com esse enfoque, a saúde da família funciona como única porta de entrada à rede de serviços (fora as urgências), assumindo a decisão sobre a necessidade de encaminhamentos para a atenção especializada. É fundamental destacar que essas decisões deverão ser tomadas de acordo com protocolos transparentes e baseados em evidências. Estabelecer e fiscalizar a aplicação de protocolos clínicos robustos são requisitos de extrema importância para evitar a tentação de algumas operadoras de planos de saúde de utilizar a saúde da família para restringir o acesso, em vez de torná-lo oportuno e realizá-lo na hora certa.
No Brasil, houve várias tentativas de focar os planos na Atenção Primária à Saúde para melhorar a qualidade do atendimento e a gestão de recursos. Mesmo sem dispor de informações atualizadas que indiquem o número de planos (e beneficiários) no Brasil especificamente focados em APS, é razoável presumir que sejam uma porção mínima do total.
É essencial que as instituições competentes promovam pesquisas que estimem o impacto (econômico, operacional e sobre a saúde dos beneficiários) de uma mudança do modelo de atenção. A experiência exitosa do SUS com a Estratégia de Saúde da Família mostra que uma APS bem estruturada melhora vários indicadores de saúde (inclusive o de mortalidade prematura) e permite economias relevantes mediante a redução de hospitalizações desnecessárias e de complicações de doenças crônico-degenerativas (como cegueira ou amputação do pé em decorrência da diabetes). Em outros países, algumas operadoras, como a norte-americana Kaiser Permanente, adotaram modelos assistências focados na Atenção Primária, com evidências de melhores resultados comparados com operadoras com modelo “tradicional”.
Por último, é importante destacar que a introdução da saúde da família nos planos tornaria possíveis interações concretas e sinergias com os serviços do SUS, assim como já acontece na atenção hospitalar, na qual os modelos de atenção do SUS e do setor privado são praticamente os mesmos.
Estado precisa liderar processo transformação do modelo de cuidado no setor privada
Mesmo que a Lei 13.874/2019 e outras iniciativas tenham sido criadas para incentivar a promoção da saúde e a prevenção de doenças na saúde suplementar, indicando uma tendência crescente nessa direção, acreditamos que uma transformação radical do modelo da atenção dos planos tem pouca probabilidade de acontecer pela espontânea iniciativa das operadoras. Por isso, seria importante que a agência reguladora ou outras entidades envolvidas promovessem um debate para analisar os desafios a serem enfrentados e as condições necessárias para esta transformação, envolvendo e estimulando as operadoras a avaliarem os benefícios e os esforços para implementar esta proposta em suas entidades.
O estudo do IEPS mostra nitidamente que o atual modelo de cuidado dos planos não tem condição de satisfazer, de forma integral e com segurança, as demandas de saúde das pessoas beneficiárias e suas famílias. Promoção e prevenção primária são ações quase completamente delegadas ao SUS (veja-se imunização), que assume a responsabilidade de oferecer o cuidado primário para toda a população (com ou sem plano de saúde) e também em muitas outras funções essenciais, como transplantes, garantia da qualidade do sangue e hemoderivados, tratamento anti-HIV.
Na espera de que a saúde suplementar consiga encontrar o caminho rumo a uma oferta de serviços pertinentes e com menos desperdícios e iatrogenia, consideramos que é essencial investir no SUS. Muitas pessoas com plano são atendidas pelo SUS, em todos os níveis de atenção, devido a mecanismos de exclusão, carência, latência ou à excessiva demora; ou ainda por evitar copagamentos das operadoras. Ter no Brasil uma Estratégia de Saúde da Família com altas coberturas e boa qualidade é importante para proteger todas as pessoas, inclusive as que têm planos de saúde.
Acompanhe as iniciativas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde no Instagram pelo @iepsoficial e no nosso canal no WhastApp