O recente anúncio de que a Meta, controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp, abandonará seu Programa de Verificação de Fatos e alterará sua política de moderação de conteúdo, inicialmente nos Estados Unidos e possivelmente em outros países no futuro, trouxe preocupação aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns deles se empenharam fortemente nos últimos anos para firmar parcerias com as redes sociais para conter a onda de revolta contra a Corte e a Justiça Eleitoral, manifestada por usuários nas plataformas.
Sob o pretexto de coibir a desinformação, especialmente sobre as urnas eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou parcerias com as maiores empresas de tecnologia do setor. Desde o início dessas iniciativas, a atual Meta – grupo que controla o Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp – foi pressionada a aderir às parcerias, especialmente pela grande quantidade de usuários de suas diferentes plataformas.
Agora, o temor dos ministros é que as mudanças na política de conteúdo, anunciadas pelo dono, o americano Mark Zuckerberg, coloque em xeque os termos dos acordos firmados com as empresas do grupo no Brasil.
Na segunda-feira (13), a Meta respondeu a uma notificação extrajudicial da Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o governo, cobrando explicações sobre as mudanças.
A empresa informou que as alterações serão implementadas inicialmente nos Estados Unidos. Elas não irão afrouxar a contenção de crimes graves – terrorismo, exploração sexual infantil, drogas, fraudes e golpes, incentivo a suicídio e automutilação. Mas as Notas da Comunidade (sistema em que os próprios usuários julgam a veracidade de publicações e incluem contexto) vão substituir o Programa de Verificação de Fatos independente, no qual agências de checagem classificam conteúdos, que podem passar a ser menos distribuídos e gerar menos repercussão nas redes.
A empresa, no entanto, informou em resposta ao governo que “permanecem inalteradas as parcerias vigentes com diferentes agências governamentais”. Mas ficou a dúvida se as parcerias com o TSE permanecem válidas. A Gazeta do Povo questionou o tribunal para saber se alguma mudança ou comunicado foi enviado para mudar os termos dos acordos firmados nos últimos anos, mas ainda não obteve resposta. A reportagem também procurou advogados do Facebook, mas não houve esclarecimentos sobre a manutenção das parcerias.
Parcerias entre Judiciário e Big Tech foram iniciativa de Barroso
A mais importante dessas parcerias foi criada em 2021, pelo atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso. Naquele ano, na presidência do TSE criou o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação no Âmbito da Justiça Eleitoral. Uma das medidas era “a colaboração e parceria com agências e instituições de checagem de fatos” – algo que, agora, ao menos nos EUA, o Facebook não mais apoiará.
Nos anos seguintes, os sucessores de Barroso na presidência do TSE – Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia – buscaram atualizar as parcerias, criando departamentos internos para tornar mais rápida e direta a interlocução com as “big techs”, as grandes empresas de tecnologia que controlam as redes sociais.
Novas normas foram criadas com novas obrigações de monitoramento do conteúdo, não só para enfrentar a desconfiança em relação ao sistema eletrônico de votação e os procedimentos de apuração, mas também para apagar e reduzir o alcance de postagens com o que o TSE considera “fatos sabidamente inverídicos” ou “gravemente descontextualizados” sobre partidos e candidatos.
Críticos do tribunal consideram essas parcerias uma forma de censura à liberdade de expressão pelo fato de que as definições sobre o que é verdade e o que é desinformação seriam definidas a partir de posicionamentos políticos parciais.
Luiz Filipe Pontes, que é advogado eleitoral e trabalha para o Instituto Internacional dos Presos e Exilados Políticos (que defende os réus das manifestações de 8/1), criticou a condução da Corte nas últimas eleições, apontando que houve uma imitação à liberdade de expressão. “A política do TSE foi muito para o lado da censura das redes sociais, na minha visão. Muitas coisas podiam de um lado, mas não podiam de outro”, avaliou.
“Espero que o TSE mude um pouco o entendimento nesse sentido. Tratar questões que um lado considera fake news, mas que, a meu ver, são liberdade de expressão, é uma visão equivocada”, afirmou.
Aliança entre TSE e plataformas afeta imparcialidade do Judiciário
O advogado José Cupertino, do escritório Cupertino Advogados, avalia com cautela as parcerias entre o Judiciário e as plataformas digitais, destacando os riscos que podem comprometer a imparcialidade da Justiça.
“Vejo com reservas parcerias em que o Judiciário perca, de alguma forma, sua imparcialidade. Especificamente, quando os interesses financeiros são estratosféricos, pois há sempre o risco de corrupção dos agentes públicos”, pontuou.
Além disso, Cupertino observa uma tendência preocupante de intervenção judicial alinhada a agendas ideológicas específicas, o que pode afetar a credibilidade das instituições.
“Existe uma tendência muito forte de intervenção do Judiciário em prol da chamada política ‘woke’. Isso acarreta em perda de credibilidade da instituição perante a sociedade, porquanto gera insegurança de modo geral”, destacou. O termo woke surgiu do idioma inglês define pessoas de visão progressista e insensata ou extremista em temas sociais e raciais.
O advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão afirmou que nem o governo nem as big techs têm o direito de interferir diretamente nas políticas um do outro. “Nem o governo tem o direito de interferir na política de moderação das plataformas, pois não há legislação que motive isso e fere a liberdade empresarial das big techs, nem as alterações das big techs podem interferir em como os tribunais colhem e formam suas provas”, afirmou.
Marsiglia também acredita que as checagens realizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral devem continuar apesar da decisão da Meta sobre a mudança de política nos Estados Unidos.
“As checagens do TSE e suas parcerias com as agências de checagem podem continuar e creio que vão, inclusive, ser ampliadas, sob o argumento de que há agora uma lacuna nesse trabalho. O que muda é a crescente desconfiança de que o enviesamento das checagens leva a Justiça Eleitoral a ser enviesada também, colocando em xeque sua credibilidade, caso siga com as parcerias”, completou.
Órgão criado por Moraes acentuou pressão sobre plataformas
No ano passado, por exemplo, o então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, criou o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), que, além de estreitar a comunicação entre o tribunal e as plataformas, passou a integrar o Ministério da Justiça, pasta do governo que controla a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal; a Procuradoria-Geral da República, órgão de cúpula do Ministério Público; bem como a Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o governo no Judiciário.
Entre os objetivos do novo órgão está o “combate à desinformação, discursos de ódio, discriminatórios e antidemocráticos, no âmbito eleitoral” – mesmas categorias que deram ao TSE o poder de suspender perfis e contas nas redes, especialmente a partir das eleições de 2022, sob a presidência de Moraes.
O último acordo celebrado entre o TSE e o Facebook foi assinado em agosto do ano passado, por ocasião das eleições municipais. O “Memorando de Entendimento-TSE Nº 29/2024” atualizava parcerias já firmadas com a empresa em 2020 e 2022. O prazo de validade oficial do atual acordo foi o dia 31 de dezembro de 2024, mas o documento diz que não haveria prejuízo para “o desenvolvimento contínuo de ações no contexto da parceria permanente firmada por meio da adesão ao Programa de Enfrentamento à Desinformação”.
A parceria incluía, principalmente, o funcionamento de um recurso chamado “megafone”, pelo qual o TSE disparava mensagens relevantes para os usuários do Facebook e Instagram sobre a organização das eleições, como prazo para registro e regularização cadastral dos eleitores e lembrete nos dias de votação; e um canal próprio no WhatsApp para “mensageria cívica”.
Numa cláusula dedicada à “contenção da desinformação”, o Facebook se comprometeu a “auxiliar com a célere identificação e contenção de casos e práticas de desinformação”. Além de cooperar com o CIEDDE de Moraes,a rede social passou a indicar a usuários um canal de denúncias, encaminhadas para análise do TSE. “Caso seja identificada potencial ilicitude, a denúncia administrativa será encaminhada para análise e providências cabíveis pelos provedores de serviços, dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas”, diz um dos termos.
Entre as medidas possíveis, previa-se o “bloqueio de conteúdo e de contas pelos provedores de serviços, quando aplicável”.
No ano passado, o jornal Folha de S.Paulo revelou conversas entre auxiliares de Moraes, no STF e no TSE, que indicavam que o ministro monitorava postagens e pedia que elas fossem denunciadas pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE e encaminhadas para inquéritos criminais que ele mesmo conduz no STF. Como resultado, ele ordenava que as empresas de tecnologia suspendessem diversos perfis em suas plataformas.