A morte do menino Ryan da Silva Andrade Santos, 4, e do adolescente Gregory Ribeiro Vasconcelos 17, na noite da última terça-feira (5) é parte de uma escalada de violência policial que já dura mais de um ano na Baixada Santista.
Ela envolve casos com mais de uma morte na mesma família, de moradores que perderam amigos em locais diferentes da mesma cidade, e de policiais envolvidos nas ocorrências das operações Escudo e Verão que também acabaram mortos.
Esse aumento da violência policial na região contrasta com a queda de diversos índices criminas na Baixada Santista —incluindo furtos, roubos e latrocínios. Já o número de homicídios segue no mesmo patamar.
Ryan, morto com um tiro na barriga durante uma incursão da PM no Morro São Bento, havia perdido o pai em 9 de fevereiro deste ano. Era Leonel Andrade Santos, 36, que foi morto a tiros de fuzil por policiais do COE (Comandos e Operações Especiais) da PM durante a Operação Verão.
Assim como na morte do filho, detalhes do boletim de ocorrência da morte de Leonel são contestados pela família. A versão contada por dois policiais narra que eles estavam numa área de mata do São Bento quando viram dois homens armados, que atiraram em sua direção. Os PMs, que não ficaram feridos, afirmam que responderam com dez tiros de fuzil.
O caso foi retratado num relatório feito por um grupo de dez entidades e liderado pela Ouvidoria das Polícias de São Paulo. O texto apontou irregularidades nas abordagens e nas investigações de várias mortes nas operações na Baixada.
Com base no relato de moradores e familiares, o documento diz que Leonel e um amigo —Jefferson Ramos Miranda— estavam conversando na rua quando foram surpreendidos pela polícia. A mulher de Leonel e mãe de Ryan, Beatriz da Silva, 29, apresentou documentos relatando que o marido usava uma muleta e que ele não poderia manejar uma arma.
Ela apresentou às entidades laudos que indicavam sua condição, pois era beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para pessoas com deficiência.
“Os corpos de ambos os homens foram colocados um sobre o outro, formando uma cruz, e ficaram no local por cerca de duas horas, ainda vivos e agonizando”, diz o relatório. A muleta de Leonel nunca foi encontrada.
Um dos dois PMs envolvidos nas mortes de Leonel e Jefferson foi morto um mês depois. O cabo Rahoney de Paula Viera, 31, foi atingido por seus próprios colegas de farda na zona sul de São Paulo ao ser confundido com um ladrão.
Outra morte na Operação Escudo também se conecta, por laços de amizade, com o caso da última terça. A mulher de 24 anos que ficou ferida com um tiro de raspão no braço era amiga de infância de um dos 28 homens mortos pela PM de julho a setembro de 2023. Ela e o ajudante de pedreiro Layrton Fernandes da Cruz, 22, cresceram no mesmo bairro.
Layrton foi morto com quatro tiros. Um deles foi potente o suficiente para que seu antebraço se descolasse do corpo quando ele foi retirado da cena do crime, o que é compatível com um tiro de fuzil à queima-roupa. Policiais do Baep também mataram a tiros o cachorro da casa.
Seu corpo foi encontrado em cima de uma cama na casa de um amigo onde ele havia passado a noite. Familiares disseram à época que ele provavelmente havia acabado de acordar quando foi alvejado. Um ano depois da morte, sua família relata que é alvo de abordagens frequentes da PM, que envolvem intimidações e ameaças.
Um dos casos mais graves, segundo um dos familiares, ocorreu no último agosto: PMs teriam entrado na casa de uma irmã de Layrton, apontado um fuzil em direção a crianças e cortado fios das câmeras de segurança. Questionada sobre as denúncias de ameaças à família, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) afirmou em julho que elas eram investigadas pelas polícias Civil e Militar.
A mulher de 24 anos, que perdeu um amigo de infância há 15 meses, viu o menino Ryan ser atingido ao seu lado na última terça.
Outro caso exemplar da espiral de violência na Baixada é o do soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Ele foi enviado ao Guarujá após o assassinado do soldado Patrick Bastos Reis, 30, seu companheiro de batalhão.
Na noite de 29 de julho —dois dias após Patrick morrer— Cosmo e outros dois policiais da Rota participaram da morte de Jefferson Junio Ramos Diogo, 34, na comunidade Prainha, em Guarujá
Segundo a versão oficial, durante patrulhamento pela periferia da cidade a equipe avistou três homens, dois deles armados. Um deles teria apontado a arma na direção dos PMs, que revidaram. Dois suspeitos conseguiram escapar, mas Diogo ficou para trás. Cosmo então seguiu atrás dele e atirou novamente com seu fuzil.
Com base nas imagens de câmeras corporais, o Ministério Público alega que Diogo estava desarmado e que os PMs simularam a apreensão do armamento. O homem morto era dependente químico e morador de rua, segundo a família. Os dois colegas de equipe de Cosmo são réus nesse caso.
No início deste ano, diante uma onda de ataques contra PMs, Cosmo foi novamente direcionado ao litoral —dessa vez para Santos. Ele patrulhava uma favela de palafitas na zona noroeste, quando foi baleado. A câmera corporal que ele carregava presa ao uniforme registrou o momento em que ele foi atingido.
Os registros oficiais de letalidade policial do governo mostram, nos últimos 11 anos, a data com mais mortes pela PM na Baixada Santista é 3 de fevereiro. É o dia seguinte ao assassinato do soldado Cosmo. Sete pessoas morreram pelas mãos de PMs naquele dia em Santos, São Vicente e Guarujá.
Na noite de 27 de fevereiro, dois irmãos foram mortos no Jardim Rio Branco, em São Vicente. Eles tinham 18 e 16 anos, e estavam junto dois adolescentes, dois jovens adultos e um homem mais velhos. Todos foram mortos ao mesmo tempo pela PM.
O caso também foi citado no relatório feito pela Ouvidoria e outras entidades por indícios de irregularidade. Moradores contam que o grupo estaria desarmado quando foi cercado em frente a um ponto de venda de drogas, num beco sem saída. Os PMs afirmaram em depoimento que foram alvo de tiros antes de revidar. Nenhum policial ficou ferido.
VIOLÊNCIA EM NÚMEROS
No âmbito das estatísticas, a espiral de violência na Baixada Santista possui duas situações distintas. Por um lado, índices criminais como latrocínios, roubos e furtos registraram queda na área do Deinter 6, departamento da Polícia Civil responsável por 24 cidades na região. Já os números ligados à violência policial explodiram.
Segundo dados da SSP, houve queda de 25% nos roubos (passando de 10.663 para 7.995) e de 5% nos furtos (passou de 4.925 para 4.361), na comparação de janeiro a setembro deste ano e o mesmo período de 2023. Os homicídios dolosos —ou seja, com intenção de matar— se mantiveram-se estáveis, passando de 109 para 108 vítimas.
Em Santos, houve queda de 27% nos roubos e de 11% nos furtos, além de uma vítima a menos de latrocínio (foram dois casos em 2023, e um neste ano). Somente os homicídios tiveram uma ligeira alta: foram de nove casos, em 2023, para 14 neste ano.
Em toda a região, ou seja, na área de 24 municípios, policiais militares em serviço foram responsáveis por 63 mortes entre janeiro a setembro de 2023. No mesmo período deste ano, foram 113 mortes. Quando se levam em conta mortes provocadas por policiais civis e que estavam de folga, os números são ainda maiores: foram 70 mortes ao longo de nove meses do ano passado, que aumentaram para 122 no mesmo período de 2024.