A ideia de conceder dignidade a quem não está mais vivo permeia a maioria das crenças sobre a morte, atravessando diferentes culturas e séculos. Em uma das mais famosas tragédias da Grécia antiga, de Sófocles, a protagonista “Antígona”, que nomeia a peça, desafia a ordem do rei Creonte e enterra seu irmão Polinices, considerado traidor de Tebas. O monarca havia decretado que o corpo deveria ser deixado insepulto, exposto aos animais, a despeito da lei divina dos rituais funerários.
Antígona é presa e condenada à morte, mas permanece convicta sobre o enterro digno do irmão e de que obedecer às leis dos deuses é mais importante do que seguir as leis humanas.
A busca para dar um significado a esse momento pode ser uma forma de processar o luto, uma tentativa de aceitar a realidade e a impotência diante da despedida. O tabu que muitas vezes envolve falar sobre a morte, por sua vez, pode vir da dificuldade de aceitar que o sofrimento é inerente à natureza humana, diz Karina Okajima Fukumitsu, pós-doutora em psicologia e referência em suicidologia —estudo do comportamento e causas suicidas.
“Nenhum ser humano gosta de perder o controle, e quer coisa mais incontrolável do que o nosso sofrimento?”, acrescenta. Uma das maiores profissionais na área da prevenção ao suicídio no país, ela diz que seu trabalho consiste em não somente pensar na única certeza que temos —a morte—, mas também em encontrar novas maneiras de enfrentamento em vida.
Tanto para honrar o morto como para darmos a nós mesmos o conforto que precisamos é que são desenvolvidos os rituais funerários.
Entre os samöma, subgrupo yanomami, o rito só termina meses após a morte, com uma grande festa, que tem como resultado o fortalecimento dos laços sociais, inclusive entre aldeias. Antes disso, no entanto, é necessário se despedir do corpo da pessoa para facilitar a sua passagem para uma outra dimensão.
O início do luto é marcado por lamentações fúnebres dos parentes próximos. A face do morto é pintada de vermelho, e sobre ele são colocadas penugens de pássaros. O corpo é cremado junto aos seus pertences, e, ao fim da cerimônia, os ossos que sobram são triturados e guardados em um recipiente, conta a antropóloga Sílvia Guimarães, professora da UnB (Universidade de Brasília).
A ideia, no fim das contas, é que se esqueça completamente da pessoa, fator determinante para que ela alcance outra vida.
“Não é bom ficar falando o nome da pessoa, e eles não gostam de fotografias porque você precisa dar um caminho para que esse morto crie o ciclo de existência dele em outro local e, ao mesmo tempo, os vivos continuem com sua vida”, diz a professora, que acompanha os yanomami há mais de duas décadas.
Os rituais fúnebres refletem os valores de cada sociedade. Neste caso, a corporalidade é central para a formação desses povos, por isso o trato com o corpo tem importância desde o início até o fim da vida. Essa característica particular os ajuda, à sua forma, a seguir em frente.
A visão cosmológica de mundo também é profundamente interligada com as religiões, que em geral veem a morte ou como intrusa, ou como rito de passagem, ou como fim definitivo, afirma o teólogo presbiteriano Victor Fontana.
Nas três grandes fés monoteístas (cristianismo, islamismo e judaísmo), a morte é uma intrusa na criação divina sobre a qual existe uma data de validade, diz, referindo-se à história de Adão e Eva. “O ser humano, quando opta por comer do fruto do conhecimento do bem e do mal, não está meramente comendo uma fruta. Ele está introduzindo a maldade no universo. A crueldade humana introduz a um mundo perfeito a ideia de morte que não deveria estar lá.”
Para crenças em que a morte é definitiva, ela é algo com o qual o ser humano apenas tem que lidar, seja cultivando a memória, seja imaginando que o ser humano se torna parte de algo maior, se despindo da noção de ego.
Já nos casos em que a morte é passagem, ela costuma se repetir até uma determinada iluminação maior, o que faz com que, muitas vezes, essas culturas levem a sério a ideia de honra e desonra. “É a ideia de que, quando você faz uma coisa errada, você suja o nome até mesmo dos seus antepassados”, diz Fontana.
A culpa, de certa forma, é um sentimento que permeia muitas dessas visões, afirma o teólogo. Além dela, o respeito ou a reverência em relação ao momento da morte.
O sacerdote da umbanda Rogério Prada, 47, já perdeu a conta de quantos atos fúnebres conduziu. Foi uma enfermidade que o levou até a religião, quando, com dois meses de idade, foi levado ao terreiro pelos pais. Ele tinha uma doença que ninguém descobria a origem.
Foram então atendidos por uma senhora que disse aos seus pais que se tratava de uma infecção que vinha da cabeça e que um médico próximo os ajudaria. Dias depois, um profissional que morava acima do comércio da família, ao ouvir o choro do bebê, se ofereceu para examiná-lo. Descobriu que ele tinha problemas nos ouvidos e o ajudou na cura. Por isso seu tempo de vida é também o seu tempo dentro da religião.
Rogério conta que a parte ritualística na umbanda é feita com o intuito de amparar o espírito, para que ele consiga seguir seu caminho sem que se apegue às coisas materiais e aos sentimentos terrenos e sem que se torne um obsessor.
Na preparação do corpo, ele é untado com elementos próximos aos orixás que a pessoa cultuava, com uma seleção de ervas e extratos. Fios de contas, colares, incensos, mirra e cantos também fazem parte. “Todos esses elementos dentro da individualidade de cada pessoa, tudo voltado para o orixá que regia a cabeça daquela pessoa”, afirma.
Apesar de crenças e culturas que podem ajudar a definir a forma como cada pessoa lida com a morte, cada processo é, mesmo, muito individual, diz a professora sênior do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Maria Julia Kovács, uma das pioneiras no estudo do tema da morte no Brasil.
Segundo ela, o luto geralmente tem momentos mais agudos, normalmente em datas que nos lembram aquele que morreu, e depois há evoluções que variam para cada pessoa. “O que a gente tem que fazer no processo de luto é se separar da pessoa do ponto de vista presencial. Não é que a pessoa desapareceu para sempre, ela só não está no nosso mundo cotidiano”, diz.
E o sentimento final não é bem o de aceitação, mas o de restauração, em que você encontra um lugar apropriado para a dor. “É impossível aceitar que alguém morre”, afirma Karina Fukumitsu.
“Você não precisa concordar com a morte da pessoa, mas entender que, como a vida não é do jeito que a gente quer, vai precisar lidar com uma constatação de limite temporal. Quando a gente começa a constatar nossa impotência frente ao que não conseguimos mudar, a gente vive a realidade, e, aí, estamos processando o luto.”