O cheiro fétido, quase insuportável e crescente a cada passo, e o mar de moscas, que produzem um zumbido sem fim, prenunciam um cenário nunca antes visto nesta parte da amazônia brasileira, a chamada várzea do rio Amazonas, a 30 minutos de Santarém (PA) em um barco com motor de alta potência.
No último dia 11, pescadores da comunidade Igarapé do Costa —o mesmo nome de um dos cursos d’água da região, que fica bem próximo das casas dos ribeirinhos— começaram a notar uma mortandade de peixes que, ao longo dos dias seguintes, ganhou contornos assustadores.
Primeiramente, morreram peixes mais frágeis, como pescada, cujuba e bacuzinho. Depois, peixes com alto valor comercial e bastante consumidos na região, como o surubim. Por fim, os animais mais fortes e resistentes, como a pirapitinga e o gigante pirarucu, símbolo do manejo sustentável na amazônia.
A mortandade se estendeu a outros animais, como jacarés, tartarugas e arraias. Foi preciso resgatar quelônios que agonizavam em uma água sem vida e levá-los a poças ainda resistentes ao calor inclemente e à ausência de chuvas. Por dias seguidos, essa transferência foi feita por integrantes da comunidade.
O desastre com a vida subaquática em comunidades que ficam na margem do rio Amazonas, o principal do bioma amazônico, vitimou entre 15 e 20 toneladas de peixe somente na região do Igarapé do Costa, segundo cálculos de pescadores da comunidade.
A Folha esteve na comunidade na última sexta-feira (22) e testemunhou a tragédia ambiental em curso, que ocorre em meio a uma seca extrema ainda longe do fim na parte oeste do Pará, com o consequente sumiço de lagos e igarapés conectados aos rios Amazonas e Tapajós. No horizonte, uma densa fumaça oriunda de queimadas na floresta cobre Santarém, outras cidades e comunidades.
No Igarapé do Costa, não há mais lago, e o próprio igarapé virou um filete de água. O mesmo ocorreu com outros dois importantes cursos d’água, fundamentais para a subsistência de cerca de 500 famílias de sete comunidades: o igarapé do Pitomba e o canal de Aramanaí.
Pescadores faziam uma corrida contra o tempo para pescar animais ainda vivos no igarapé do Costa, como pirarucus. Dias antes, eles arrastaram toneladas de peixes mortos e dispuseram essa matéria orgânica em diversos montes na margem, para atear fogo em seguida. As carcaças permanecem no lugar.
Adiante, urubus e garças se amontoam no início de uma enorme mancha branca e preta na água, no chamado igarapé do Pitomba. A mancha é formada por outras toneladas de peixes mortos.
“Em 33 anos de vida, eu nunca vi isso”, afirma Erick Penna Ribeiro, presidente da associação de moradores do igarapé do Costa, que conduz a canoa. Ele nasceu na comunidade, onde sempre viveu. A pesca é a principal atividade econômica na região. “Foi este ano que deu essa mortandade. Os antigos nunca relataram algo do tipo.”
A sensação de que a mortandade vai prosseguir, com novas ondas de perdas massivas de peixes e outros animais, é inevitável para quem olha para a água. Onde há água há peixes na superfície buscando oxigênio, principalmente acaris; borbulhas espocam em todo o horizonte da água que resta. Em uma poça resistente à seca, aruanãs agonizam na tentativa por vida.
No dia seguinte à constatação do início da mortandade, dois biólogos visitaram a comunidade, segundo as lideranças da região. Um biólogo é da Semma (Secretaria Municipal de Meio Ambiente) de Santarém.
Os pescadores dizem ter ouvido dos especialistas que as mortes devem ter sido provocadas por um choque térmico e que seria necessário correr e pescar os peixes ainda com vida. Uma chuva atingiu as águas aquecidas dos filetes que restaram, o que pode ter provocado esse choque térmico, conforme a versão apresentada.
O relato despertou nos pescadores um sentimento dúbio. A região de Santarém sofre com uma seca extrema, prolongada pela estiagem. Pescadores do igarapé do Costa e de outras comunidades, porém, passaram a torcer para não chover, temendo novas ondas de mortes de peixes.
“Essa água está podre. Se chover, outro choque térmico mataria mais peixes”, diz Erick. Ele afirma, porém, não ter respostas exatas para o que de fato ocorreu.
As comunidades esperam explicações científicas para a mortandade, mas até agora não houve análises precisas da água nem dos animais mortos.
Genardo Queiroz de Oliveira, 50, é um dos biólogos que estiveram na região. Ele atua na Semma. “O que houve foi falta de oxigênio e temperatura elevada da água. A média foi de 32°C, enquanto o aceitável é de 28°C”, afirma. “Quando cai uma chuva, muda rapidamente a temperatura da água.”
O biólogo diz ainda que não há chances de ter havido contaminação exógena dos igarapés.
A contaminação pode estar em curso agora, porém, com a decomposição dos animais. “No ano passado, teve mortes, mas não como foi neste ano. E não há como prever isso. A seca nestes últimos dois anos foi atípica.”
Quando centenas de botos vermelhos —os botos cor-de-rosa, como são popularmente conhecidos— e tucuxis —uma espécie com menor porte— morreram em razão do superaquecimento dos lagos Tefé e Coari, no médio rio Solimões, no Amazonas, houve intensa mobilização científica e do governo federal para entender o que ocorria e tentar interromper o problema.
O episódio, na seca extrema de 2023, simbolizou a gravidade da emergência climática em curso na amazônia, causada por uma confluência de fatores: o prolongamento do El Niño (aquecimento acima da média no oceano Pacífico, perto da linha do Equador), o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, o desmatamento e a degradação da floresta e as mudanças climáticas.
Agora, a mortandade massiva de peixes e outras espécies em um ponto de influência do rio Amazonas ainda não despertou reações por parte dos governos municipais, estadual e federal. Os ribeirinhos não recebem ajuda nem mesmo para arrastar toneladas de peixes para as margens, ação que busca evitar o mau cheiro e a contaminação da água quando os rios e igarapés encherem.
A reportagem questionou o governo do Pará e o MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) se tomaram conhecimento da situação e o que foi ou será feito a respeito. Não houve resposta.
Pescadores receberam um auxílio do governo federal —dois salários mínimos— para lidar com a emergência da seca, segundo relatos dos ribeirinhos. Também ganham o Bolsa Família e estão inscritos para o seguro defeso, pago durante o período de reprodução dos peixes.
“Esta seca foi a maior de todas”, afirma Ednei José da Gama, 49, presidente do conselho do Urucurituba, que abarca as sete comunidades dependentes dos igarapés onde houve a mortandade de peixes. “Já houve outras mortandades, mas coisa pouca. A gente precisa de uma resposta sobre o que ocorreu.”
As reportagens da série Mudanças Climáticas na Amazônia contam com apoio da Rainforest Foundation Norway.