Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou o programa Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, uma iniciativa que mobilizou diversos setores da sociedade brasileira.
Em um primeiro momento, o braço paulista do Sesc apoiou o projeto ao promover uma jornada de 24 horas de shows na unidade de Interlagos, em que o ingresso era pago com um quilo de alimento não perecível.
Para a chefia da entidade, porém, a organização desse evento era insuficiente para a dimensão do problema. Danilo Santos de Miranda, então diretor do Sesc-SP, viajou aos EUA para conhecer algumas instituições que faziam ações sistemáticas de combate à fome.
De volta ao Brasil, Danilo e sua equipe conceberam, em 1994, o que viria a ser o Sesc Mesa Brasil. A ideia teve um ponto de partida modesto na unidade do Carmo, no centro da capital paulista, e, aos poucos, expandiu-se pelo país.
Desde o começo, o projeto segue o modelo de colheita urbana, em que cabe ao Sesc ligar duas pontas, quem doa e quem recebe. Ao longo dessas três décadas, celebradas neste ano de 2024, o Mesa Brasil passou por aprimoramentos, mas a essência da operação se mantém.
Com um motorista e um auxiliar de serviço, um caminhão vai logo cedo a uma empresa doadora, que pode ser um supermercado, um sacolão, uma padaria, uma indústria alimentícia ou um produtor rural. Neste local, a dupla recolhe alimentos que perderam valor comercial, mas que ainda estão adequados para consumo. O passo seguinte é levar esses alimentos para entidades assistenciais.
“Montamos um programa para aproveitar uma porção de produtos. O tomate está meio batido, mas pode servir para fazer um molho. Uma batata que não está tão bonita pode ser usada para fazer um purê. E assim por diante”, afirma Luiz Galina, que assumiu a direção do Sesc-SP dias depois da morte de Danilo, no final de 2023.
O Mesa Brasil vai encerrar este ano com a maior arrecadação de alimentos desde sua criação. Até meados de dezembro, o programa já tinha obtido 52 mil toneladas, uma marca recorde ao longo dessas três décadas.
Em todo o país, estão cadastradas cerca de 3.400 empresas, que doam seus excedentes de produção, e por volta de 7.200 entidades assistenciais, o que representa em torno de 2,2 milhões de pessoas atendidas.
São Paulo é a unidade federativa com maior adesão: em uma ponta, 1.030 empresas doadoras; na outra, 1.200 instituições contempladas, o que significa quase meio milhão de pessoas atendidas. São 52 caminhões a serviço do Mesa Brasil no estado.
No dia 18 de dezembro, a reportagem acompanhou o trabalho do motorista Paulo Roberto Lopes e do auxiliar Marceni Costa Souza.
Depois de deixar o Sesc Carmo, eles chegaram ao supermercado Sonda, na Água Branca, na zona oeste de São Paulo, por volta de 9h. Depois de verificar item por item, recolheram 17 caixas, que incluíam frutas, como uva e mamão, e legumes, como batata e berinjela, além de pães.
Chamava a atenção a quantidade de bananas destinadas para doação. Estavam bastante maduras, mas ainda boas para o consumo in natura. Não podiam, porém, ser mantidas nos espaços de venda por conta das manchas pretas sobre a casca, uma marca rejeitada pelos compradores.
Como explica a nutricionista Ludmilla Dantas, responsável pelo departamento de qualidade e segurança dos alimentos da rede Sonda, são duas etapas para definir o que será retirado de comercialização e, desse total, o que será separado para doação e o que vai para o lixo.
À noite ou nas primeiras horas da manhã, um grupo faz o que costuma se chamar no varejo de “virada da banca”. Tira das áreas de venda o que não está dentro dos padrões comerciais e coloca novos produtos. Às 6h, uma segunda equipe, de trocas, faz uma nova triagem e separa os itens para doação.
Em São Paulo, além do Sonda, o Mesa Brasil tem parcerias com outras grandes redes, como Grupo Pão de Açúcar e Carrefour.
Abastecido o caminhão, Lopes e Souza seguiram para a Vila Anastácio, também na zona oeste, onde fica o Cecam (Centro de Captação e Armazenagem Mesa Brasil), que vai completar dez anos em 2025.
O modelo tradicional da colheita urbana prevê retirada dos alimentos nas empresas doadoras pela manhã e entrega nas instituições sociais à tarde. Não há armazenagem, segundo a nutricionista Mariana Meirelles Ruocco, gerente de alimentação e segurança alimentar do Sesc-SP.
A criação do Cecam foi uma adaptação ao modelo inicial, dado aumento de ofertas de doações de grandes volumes. “O que fazer quando recebemos, por exemplo, um caminhão de iogurte? Não dá para distribuir no mesmo dia, daí a importância da capacidade de armazenamento no Cecam. De qualquer forma, procuramos distribuir o mais rápido possível”, diz Galina.
Uma volta pelo Cecam, formado por um grande armazém e um escritório, dá uma ideia dos motivos que levam um alimento a ser rotulado como “sem valor comercial”, embora possa ser consumido. O caso de um produto prestes a ter o prazo de validade vencido é um dos mais comuns –a logística desenvolvida pelo Mesa Brasil permite escoar esses itens antes da data final.
A nutricionista Mariana Meirelles Ruocco também cita as ações educativas promovidas pelo Mesa Brasil. “A maioria dessas atividades são voltadas para as cozinheiras e as merendeiras das entidades assistenciais cadastradas.”
Do Cecam, o caminhão voltou para Água Branca para entregar as doações na unidade São Lucas do Instituto Rogacionista. É um espaço dividido em duas partes, basicamente: atende crianças e adolescentes no contraturno escolar, e adultos em um centro de capacitação profissional.
Segundo Fabiana Marchi, gerente do Centro para Crianças e Adolescentes da unidade, o local recebe uma verba da Prefeitura de São Paulo para arcar com a alimentação de 120 pessoas. Com as doações do Mesa Brasil, consegue atender 142.
De acordo com a nutricionista Sheila Travain, coordenadora do Mesa Brasil no Sesc Carmo, o programa não se dispõe a entregar às entidades ingredientes para uma refeição inteira, mas complementos. “Os alimentos que costumam ser mais desperdiçados, como frutas, verduras e legumes, são aqueles que, muitas vezes, as instituições têm dificuldade para comprar. Com esses complementos, dá para garantir a qualidade da refeição”, afirma.
Concluído o giro pela cidade, o caminhão voltou ao Sesc Carmo de carroceria vazia. No dia seguinte, tudo começou outra vez.