“O mundo para o qual estamos caminhando tem matemática em toda a parte. E não digo isso no sentido de ‘A matemática está em tudo, crianças!’. Estou falando de algo concreto e meio sombrio”. A declaração é de um dos participantes do documentário “Counted out”, da cineasta Vicki Abeles.
O filme, cujo título pode ser traduzido livremente para “Excluídos pela matemática”, se debruça sobre as grandes crises dos nossos tempos —mudanças climáticas, polarização política, desigualdades econômicas e raciais, a pandemia— e como a nossa (falta de) compreensão da matemática afeta a capacidade de cada um, e da sociedade como um todo, para compreender as questões subjacentes e lidar com elas.
Um exemplo é o fenômeno tipicamente norte-americano do “gerrymandering”, as manobras do partido no poder em cada estado para definir os distritos eleitorais, geralmente de forma artificial, para aumentar a sua vantagem eleitoral em detrimento da representatividade dos eleitores do outro partido.
A solução desse problema passa necessariamente pela matemática, única que pode fornecer um critério transparente do que é ou não artificial. Mas quando propostas nesse sentido foram levadas à Suprema Corte, elas foram descartadas pelos ministros conservadores porque seriam “conversa fiada sociológica”: o pressuposto era que as pessoas (começando pelos ministros…) nunca aceitariam uma regra matemática que não compreendem.
Cada vez mais, decisões críticas sobre nossas vidas, quem conhecemos, que educação recebemos, que notícias lemos, que empregos alcançamos, são tomadas por ferramentas matemáticas, dados, estatísticas, algoritmos, que muito poucos entendem.
Cerca de 40% dos norte-americanos desenvolvem diabetes ao longo de suas vidas, mas apenas 9% têm as capacidades matemáticas básicas para lidar com o tratamento. Somente 37% conseguem passar em um teste básico de matemática financeira. E mais de 90% sofreram em algum momento de ansiedade matemática, uma reação emocional negativa que debilita e chega a bloquear a capacidade de raciocínio. Não sei quais são os números correspondentes no Brasil, mas duvido que sejam muito diferentes.
Por que as pessoas têm tanto medo da matemática? E, com tanto em jogo, quais são as consequências desse estado de coisas?
“Queiramos ou não, a compreensão da linguagem matemática é um fator determinante de poder econômico e social. Quando limitamos o acesso à matemática a alguns poucos, limitamos o nosso progresso como sociedade”, afirma Abeles. E vai mais longe: “Sem a capacidade para entender os números e suas consequências, as pessoas são excluídas e manipuladas. Percebi que proficiência matemática não é apenas uma necessidade, é um direito cívico. Você precisa de um certo nível de habilidade matemática para exercer a sua cidadania de modo pleno”.
Em matéria sobre “Counted out”, o jornal New York Times alerta: “matemática é assunto de vida ou morte para a democracia”. Neste momento em que, enquanto escrevo este texto, os eleitores norte-americanos participam na eleição mais consequente de nossas vidas, o alerta nunca pareceu tão oportuno.
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