Martha Stewart foi a primeira mulher não herdeira a se tonar bilionária nos Estados Unidos. Modelo, corretora da bolsa de valores, dona de serviço de catering que atendia ricos e famosos do mundo artístico, fundadora de um império de comunicação.
Pioneira na comercialização de um estilo de vida, o que conhecemos hoje como influenciadores, vendia receitas, jardinagem, decoração com uma embalagem acolhedora e ao mesmo tempo sexy, com estilo que virou sinônimo de viver bem. Até que foi presa, em 2004, sob acusação de ter se beneficiado de informações privilegiadas no mercado financeiro.
Tudo isso está no documentário “Martha” (Netflix), que traça o perfil da empresária sem cair na armadilha de humanizar a personagem a tal ponto de transformá-la apenas numa grande vítima do mundo dos negócios, do machismo, da vida.
Um dos méritos do filme é retratar suas imperfeições por trás da fachada perfeita vendida durante sua vida, ao mesmo tempo que escancara o tratamento cruel dado a ela pela imprensa, por parte do público, pela justiça, quando foi denunciada. É o espectador quem decide se gosta ou não da personagem, sem a manipulação chapa branca de produções do gênero que exaltam apenas as qualidades do documentado.
Para mim, havia rancor e o tom era de satisfação na cobertura do processo, que revelava nuances da personalidade controversa de Martha, sempre apontadas como qualidades quando se trata de um homem de negócios, mas imperdoáveis no caso de uma mulher.
Obsessiva, controladora, narcisista, opressora. Sim, mas sedutora, carismática, inteligente, sagaz e, muito importante, extremamente conectada ao espírito do tempo. A ponto de transformar em redenção sua participação num episódio do Comedy Central que, do início ao fim, zombou de seus privilégios, de seus defeitos, de sua prisão. Martha dá um nó nos participantes da noite, como Snoop Dogg, e cai nas graças do público jovem.
A questão é: Martha Stewart não é uma mulher boazinha. Foi o que a levou tão longe, mas também o que despertou a antipatia de seus desafetos. A sociedade tem mudado muito desde que ela cumpriu a pena de cinco meses numa prisão americana. Mulheres poderosas têm sido festejadas, não sem resistência. Muito mais porque é a única resposta a demandas de movimentos feministas do que pelo reconhecimento de que ocuparemos cada vez mais os espaços tradicionalmente masculinos.
Enquanto a apresentadora era apenas a dona de casa (aparentemente) perfeitinha que compartilhava seus segredos sobre cozinhar, servir e receber com perfeição, tudo bem. A partir do momento que passou a decidir não apenas a cor das almofadas, mas ter seu nome em utilidades domésticas, revistas, programas de TV, ser dona de tudo isso e ditar quais seriam as regras, Martha ultrapassou o limite que era imposto, ainda que informalmente, às mulheres. E pagou o preço, cobrado pelos promotores federais.
“Eles deveriam ser colocados dentro de uma Cuisinart em fogo alto”, diz ela, sem disfarçar o desprezo, sem discursos vazios de superação. Sem bancar a mocinha que deu a volta por cima, mas a mulher com os defeitos e as qualidades que fizeram dela um estrondoso sucesso. Ser boazinha não é um deles.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.