Imagens de Marte, feitas da órbita do planeta da década de 1970 para cá, capturaram curiosas listras escuras descendo pelas laterais de penhascos e paredes de crateras. Alguns cientistas interpretaram essas marcas como possíveis evidências de fluxos de água líquida, sugerindo que o planeta abriga ambientes adequados para organismos vivos.
Mas um novo estudo lança dúvidas sobre essa interpretação. Ao examinarem milhares dessas marcas sinuosas detectadas em imagens de satélite, pesquisadores concluíram que provavelmente elas resultam de processos secos que lhe deram a aparência superficial de fluxos líquidos. Isso reforça a visão de que o planeta vermelho seja inóspito, pelo menos em sua superfície.
Os dados indicaram que a formação dessas listras é impulsionada pelo acúmulo de poeira de grãos finos da atmosfera marciana em terrenos inclinados, que depois é derrubada pelas encostas devido a gatilhos como rajadas de vento, impactos de meteoritos e maremotos.
“As minúsculas partículas de poeira podem criar padrões semelhantes a fluxos sem líquido. Esse fenômeno ocorre porque a poeira extremamente fina pode se comportar de maneira similar a um líquido quando perturbada —fluindo, ramificando-se e criando padrões em forma de dedos enquanto se move encosta abaixo”, disse Adomas Valantinas, pesquisador de pós-doutorado em ciências planetárias na Universidade Brown e colíder do estudo publicado nesta segunda-feira (19) na revista Nature Communications.
“É semelhante a como a areia seca pode fluir como água quando derramada. Mas em Marte as partículas ultrafinas e a baixa gravidade intensificam essas propriedades semelhantes a fluidos, criando características que podem ser confundidas com fluxos de água quando na verdade são apenas materiais secos em movimento”, acrescentou Valantinas.
O estudo examinou cerca de 87 mil imagens de satélite —incluindo as obtidas entre 2006 e 2020 por uma câmera a bordo de uma sonda da Nasa— de estrias em encostas, que se formam repentinamente e desvanecem ao longo de anos. Elas têm em média aproximadamente 600 e 775 metros de comprimento, às vezes ramificando-se e contornando obstáculos.
As estrias de encosta estavam concentradas principalmente no hemisfério norte, particularmente em três grandes aglomerados: nas planícies de Elysium Planitia, nas terras altas de Arabia Terra e no vasto planalto vulcânico de Tharsis, incluindo o vulcão Olympus Mons, que se eleva cerca de três vezes mais alto que o Everest.
Os pesquisadores afirmaram que as limitações na resolução das imagens de satélite significam que eles contabilizam apenas uma fração das estrias de encosta. Eles estimaram que o número real pode chegar a dois milhões.
A água é considerada um ingrediente essencial para a vida. Marte, bilhões de anos atrás, era mais úmido e quente do que é hoje. A questão que permanece é se o planeta possui alguma água líquida em sua superfície quando as temperaturas sazonalmente podem ultrapassar o ponto de congelamento.
Ainda é possível que pequenas quantidades de água —talvez provenientes de gelo enterrado, aquíferos subterrâneos ou ar anormalmente úmido— possam se misturar com sal suficiente no solo para criar um fluxo, mesmo na superfície frígida de Marte. Isso levanta a possibilidade de que as estrias nas encostas, se causadas por condições úmidas, poderiam ser nichos habitáveis.
“Geralmente, é muito difícil para a água líquida existir na superfície marciana, devido à baixa temperatura e à baixa pressão atmosférica. Mas as salmouras —água muito salgada— potencialmente poderiam existir por curtos períodos de tempo”, disse o geomorfologista planetário e colíder do estudo Valentin Bickel, da Universidade de Berna, na Suíça.
Dado o volume de imagens, os pesquisadores empregaram um método avançado de aprendizado de máquina, buscando correlações envolvendo padrões de temperatura, deposição de poeira atmosférica, impactos de meteoritos, a natureza do terreno e outros fatores. A análise geoestatística descobriu que as estrias nas encostas frequentemente aparecem nas regiões mais empoeiradas e se correlacionam com padrões de vento, enquanto algumas se formam próximas aos locais de impactos recentes e terremotos.
Os pesquisadores também estudaram características de vida mais curta chamadas linhas recorrentes em encostas, vistas sobretudo nas terras altas do sul de Marte. Elas crescem no verão e desaparecem no inverno seguinte. Os dados sugeriram que essas marcas também estavam associadas a processos secos, como redemoinhos de poeira e quedas de rochas.
A análise descobriu que ambos os tipos de características não estavam tipicamente associados a fatores indicativos de origem líquida ou de geada, como grandes flutuações de temperatura na superfície, alta umidade ou orientações específicas de encostas.
“Tudo se resume à habitabilidade e à busca por vida”, disse Bickel. “Se as estrias em encostas e as RSL fossem realmente impulsionadas por água líquida ou salmouras, elas poderiam criar um nicho para a vida. No entanto, se não estiverem ligadas a processos úmidos, isso nos permite concentrar nossa atenção em outros locais mais promissores.”