Acompanhei com dor e tristeza a morte da cachorra “influencer” Meuri. Há uma reportagem aqui no Morte Sem Tabu sobre sua história e como o tutor, Zaca Oliveira, tem atravessado o luto. Zaca produziu uma placa azulejada com os dizeres “Rua de Mel” para honrar essa trajetória de quase 10 anos.
Como tutora, confesso: sempre me pego pensando com angústia no dia em que isso acontecer. Dói só de pensar. A minha cachorra, Tuca, é o primeiro animal que adoto em minha fase adulta. É minha primeira grande responsabilidade consciente e desejada. Chegou no portão de casa horas antes de eu completar 30 anos, como um grande rito de passagem.
Já são quase quatro anos de uma relação de muito amor, na qual aprendi sua forma não-verbal de se comunicar e encontrei nesse amor um lugar seguro e confortante. Só de imaginar perder de vista os olhinhos atentos de Tuca me dá muito medo.
As pessoas me pedem dicas de como lidar com o luto do animal. Eu não sei. Eu nunca soube lidar com os meus lutos, mas aprendi a nomear algumas dores e a criar significados, dando limites e contornos ao que eu sentia (faz 10 anos que meu pai morreu). Esse processo, no entanto, é individual, e pode durar tempos diferentes para cada pessoa. Faço sessões de terapia há pelo menos nove anos.
Pensando em apoiar quem pode estar passando por isso neste momento, conversei com a psicoterapeuta Patrícia Vidal. Especialista em luto pelo Instituto de Psicologia Quatro Estações, Patrícia realiza mensalmente uma roda de acolhimento a tutores enlutados, em parceria com o RIP PET – Crematório de Animais. O próximo encontro acontece na próxima quarta-feira (11). Ela também produz conteúdos sobre luto pet e vínculo humano-animal por meio do perfil “Vínculos e Lutos“.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Falar sobre luto é falar sobre vínculo. Como a o vínculo entre humanos e animais de estimação se transformaram, a ponto de os pets ocuparem espaço tão importante, em termos afetivos, quanto humanos?
O lugar que os animais têm ocupado se transformou muito nos últimos 30 anos. Eu ainda atendo pessoas cujos pets ficavam, poucos anos atrás, nos quintais, lá longe, guardando a casa. Bastante distanciados do convívio familiar, ainda mais da intimidade de dormir juntos. Isso tem mudado drasticamente. De fato, a conexão com o animal vai crescendo e ganhando espaço, porque as relações humanas são complexas, são conflituosas e, para algumas pessoas, são muito decepcionantes, trazem muita dor. Então, animal é muito atraente, porque ele mostra uma disponibilidade e estabilidade. Ele traz segurança na resposta que apresenta e um amor absolutamente incondicional. Nós somos movidos a um instinto que busca amar, ser amado e se sentir seguro. E o animal vai nesse lugar muito primordial da nossa sensação de bem-estar, e de valor e importância no mundo. Ele vai direto para suprir todas essas necessidades essenciais.
O luto pet ainda é um luto não reconhecido? Como isso vem mudando?
O luto pela perda do pet ainda não é reconhecido. Não existe uma permissão ou um limite, uma moldura em que esse luto pode se expressar de forma segura e empática. Felizmente, temos cada vez mais os velórios pela perda do pet, as cerimônias fúnebres, os memoriais. Todos esses rituais fazem parte da organização desse processo de luto. São marcos que têm conseguido ocupar mais espaço dentro do que se considera aceitável com relação ao luto do pet. Mas ainda é bastante frequente um estranhamento para as manifestações do tutor enlutado. Existe uma pressão de que a pessoa volte à vida rapidamente, volte a ser produtiva e supere. Supere entre aspas aqui, porque não existe superação no luto. Mas esperam que a pessoa resolva logo aquela tristeza, aquela dor. São muito recorrentes os questionamentos: “nossa, ainda está chorando, mas já faz dois meses”. Falta uma educação pro luto e pra morte. As pessoas não entendem que o luto é feito de ondas, de marés, de ciclos, ele vem e vai e vem e vai. O enlutado vai se ajustando para aquela vida que segue dentro dessas marés, descobrindo o que funciona pra ele, o que ajuda, o que atrapalha. Tem muita coisa acontecendo e esse processo já é, em si, um processo muito interno e solitário. E quando há uma crítica social, a não empatia, a não compaixão, esse sofrimento é multiplicado em muitas camadas. Mas tem havido a discussão sobre uma licença do trabalho para o tutor nesse dia de luto e de dor. Começa um pequeno indício de que essa corrente está mudando.
Mesmo com as mudanças, quais são os maiores desafios do enlutado pela perda de pet?
Os maiores desafios do enlutado pet é enfrentar a crítica de pessoas que não entendem. Não é só a perda do pet que é não-autorizada, o vínculo também é não-autorizado. O lugar que o pet pode ocupar na vida igualmente rende muitas críticas e incompreensão. Essa incompreensão do espaço interno que o pet ocupa no psíquico do tutor é brutal e leva a esse estranhamento, a essa sensação de que há um exagero no luto. Há falas extremamente dolorosas que se caracterizam por um interdito de ordem religiosa ou espiritual, de que “a tristeza não cabe, de que ela pode prejudicar o animal, de que o animal está parado ali esperando, não está progredindo no seu caminho espiritual, porque o tutor está triste”. E há interditos em sentido oposto, como o de que “era só um cachorro, era só um gato, não é pra tanto, ainda se fosse um humano”. “Pega outro animal logo, ocupa esse espaço vazio”.
Há também a questão do isolamento, porque o luto em si é um processo tão interno e tão profundo, que é vivido de forma solitária, qualquer luto é. As pessoas se sensibilizam por um tempo, depois não tanto. E a pessoa ainda está processando aquelas ondas de tristeza, de pesar, de saudade e, muitas vezes, não tem mais um colo amigo. O isolamento é um grande fator de risco para os tutores enlutados.
Os grupos de pessoas que gostam de animais, de tutores enlutados, têm um efeito benéfico e protetor muito potente. O enlutado se identifica com os demais, percebe que não está sozinho na sua vivência. Há uma troca de experiências, uma troca de apoio. No entanto, esses grupos, às vezes, quando são grupos de longa duração, podem agravar o processo de luto, porque sente-se também a dor do outro, que sempre se renova. Então, se, por um lado, há uma sensação de que estou apoiado, existem outros iguais a mim, pode haver uma grande absorção da tristeza e do pesar dos outros, e isso levar pra uma situação pior, de mais sofrimento.
Poderia dar dicas práticas para o tutor que está vivenciando um luto animal?
É importante que os tutores entendam que têm um lugar de protagonismo e escolha no processo de luto, ainda que ele seja muito avassalador. Costumo dizer que, no luto, é como se a pessoa estivesse em carne viva. Hipersensível. Qualquer comentário, qualquer invasão é muito sentida.
Quando a gente fortalece e, de alguma forma, autoriza que o enlutado se posicione de forma assertiva, isso é um fator de proteção para ele. A preparação dessa “casquinha protetora” começa, por exemplo, com o tutor elaborando uma versão oficial do que aconteceu com o pet para pessoas que não são tão íntimas e que vão perguntar. As pessoas são muito curiosas, não tem essa percepção de timing e de adequação.
Também sinta-se muito à vontade para dizer que não quer falar sobre o assunto. Isso parece tão simples, mas às vezes o tutor não consegue se examinar. Quando a gente afina esse termômetro interno, ele vai se orientando dentro das situações que aparecem. Dou como exemplo o de um tutor que estava com muita apreensão de pegar o elevador e descer. Ele estava isolado há alguns bons dias no apartamento após a partida do animal e estava com medo de perguntarem sobre ele. Trabalhamos o que que ele se sentia à vontade de dizer e o que não, e como colocar limites. Há limites que parecem também bobagem, mas não são. Como as sugestões das pessoas de tirar todos os pertences do animal rapidamente, pra você não ficar se machucando ou tendo saudades. Cada tutor sabe se dá conta, se faz sentido tirar os pertences do animal, os objetos, ou não, quando e se quer fazer.
Muitas vezes, as falas dos outros falas têm mais a ver com a sua ansiedade e dificuldade de lidar com a tristeza e o pesar da pessoa enlutada, de querer resolver e tirar a dor do outro. O posicionamento do tutor, sobre o que quer ou não, é um trabalho muito importante, porque já vai estruturando e levando o tutor pra um lugar também de escolha. Cada relação é única, cada vínculo é único, cada perda é única também. Cada enlutado vai viver o seu processo de uma forma muito pessoal. É fundamental que ele possa sustentar o que faz sentido pra ele. Tive alguns tutores que deixaram por muitos meses, até por mais de um ano, uma mancha de pata na parede, uma lambida na janela. Resquícios desse animal, dessa vivência, dessa história na casa. Sustentar o luto prepara para a crítica e as tentativas de interferências. Isso exige uma fortaleza interna que a gente trabalha em terapia.