Quando a psicóloga Heloisa Salgado viveu a primeira perda gestacional, entendeu que precisava se debruçar com afinco sobre o tema do luto perinatal. Entre pesquisas, entrevistas e escuta de pessoas que haviam atravessado esse tipo de luto, ela se surpreendeu com os desafios enfrentados por mulheres para receber os serviços de saúde e acolhimento na hora da perda.
“Minha primeira perda, que também foi a primeira gestação, foi muito difícil. Foi a perda que precisei ir para o hospital. E, com isso, sofri violência e demorei muito para entender o que era isso”, relembra Heloisa.
Já atuando com a temática, Heloisa passou por mais duas perdas gestacionais precoces – nome que se dá ao aborto espontâneo. Ao viver essas perdas, se sentiu ainda mais compelida a estudar o assunto. Ao longo do mestrado em saúde pública, além de participar de pesquisas, também manteve um diálogo constante com mulheres que haviam vivido violências durante atendimentos relacionados a perdas durante a gravidez.
Um marco importante foi o relato de uma amiga que havia recebido assistência no Canadá. O contraste entre o acolhimento oferecido lá e a realidade brasileira foi tão impactante que Heloísa decidiu escrever sobre o tema. Ela é coautora do livro Como lidar: luto perinatal — acolhimento em situações de perda gestacional e neonatal, escrito em parceria com Carla Andreucci Polido.
A partir dessas vivências, a psicóloga fundou o Instituto Luto Perinatal e se tornou uma das principais vozes na defesa do acolhimento a famílias enlutadas no Brasil. Desde então, atua no apoio direto a essas famílias e na formação de profissionais de saúde para que nenhuma pessoa enfrente uma perda sem escuta, acolhimento e informação.
Nesta entrevista, Heloisa fala sobre os impactos da invisibilidade do luto perinatal, os desafios para garantir o acesso à interrupção legal da gestação, e a importância do Projeto de Lei (PL) 7/2024, chamado Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, que aguarda aprovação no Senado Federal. A política inclui medidas como: atendimento psicológico desde a internação; espaços reservados para despedida; formação específica de profissionais; declaração de nascimento e óbito com nome e impressões do bebê. Confira!
Morte Sem Tabu: Poderia explicar a diferença entre as nomenclaturas: luto perinatal, luto gestacional e luto neonatal?
Heloisa Salgado: Luto gestacional, luto perinatal e luto neonatal são formas de vivência do luto que se referem a diferentes períodos relacionados à gestação, ao parto e ao pós-parto. O luto gestacional acontece quando há uma perda durante a gestação. Já o luto neonatal ocorre após o nascimento do bebê, quando ele vem a falecer nos primeiros dias de vida.
O termo luto perinatal está relacionado à ideia de perinatalidade, um conceito que vem da epidemiologia, e que também é utilizado pelas ciências jurídicas. Esses campos o empregam, por exemplo, para definir o que é embrião, o que é feto, se é necessário emitir uma declaração de nascido vivo ou morto, e quais direitos, como a licença-maternidade, serão assegurados. Tudo isso depende do momento exato em que ocorreu o parto ou o óbito do bebê.
Segundo a epidemiologia, a perinatalidade abrange o período que vai da 22ª semana de gestação , ou quando o feto atinge 500 gramas , até o sétimo dia de vida do recém-nascido. Ou seja, qualquer perda ocorrida entre esse intervalo é considerada perinatal. Por isso, e para facilitar a comunicação, convencionamos usar o termo luto perinatal como uma forma abrangente para falar dessas experiências de perda.
Morte Sem Tabu: O luto perinatal, gestacional e neonatal ainda são lutos não reconhecidos em nossa sociedade?
Heloisa Salgado: São lutos considerados não reconhecidos e socialmente invisibilizados. Quando a gente fala em teoria do luto, entende o luto como um sentimento, uma emoção, um fenômeno vivido diante da perda de uma pessoa, de uma situação ou de uma condição de vida. E o luto está diretamente ligado ao vínculo, ao amor, ao afeto investido. Quanto mais eu amo, quanto mais eu dependo, quanto maior o meu afeto, maior é também a dor dessa perda.
De modo geral, o luto por perdas de filhos costuma ser mais complexo do que outros tipos de luto. E o que acontece quando morre um bebê, ainda na barriga ou logo após o nascimento? O mundo, muitas vezes, não criou esse vínculo, esse afeto. E quanto mais recente é a gestação, mais difícil ainda para os outros reconhecerem que ali já existia uma conexão, um vínculo, um projeto de vida.
É muito comum as pessoas dizerem coisas como “logo você engravida de novo”. E aí, quem está passando por esse luto — seja a pessoa gestante, o casal ou a família mais próxima — sofre sozinho. Sente que sua dor não é reconhecida. Sente que seu bebê não é reconhecido. As pessoas ao redor se calam, e quem está enlutado muitas vezes acha que está enlouquecendo, porque está sofrendo profundamente, enquanto o mundo está dizendo para ela não sofrer.
Cada vez que, como sociedade, a gente diz algo assim para alguém que perdeu um bebê ou passou por uma perda gestacional, a gente está minimizando esse sofrimento, invalidando esse luto. Quantas pessoas a gente conhece que nem chegaram a ter um teste de gravidez positivo, mas já fizeram uma série de planos para seus filhos? Aí entram também os lutos nos tratamentos de fertilidade, que são ainda menos reconhecidos. Mas essas pessoas já têm vínculo com esse filho, com esse bebê que ainda nem existe.
Morte Sem Tabu: Qual é a importância da Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental?
Heloisa Salgado: Essa política vai reger tudo o que acontece a partir do momento em que se constata que aquela gestação não vai evoluir, que o bebê tem um diagnóstico muito grave e pode não sobreviver, ou quando o óbito é confirmado.
Ela define que algumas coisas precisam acontecer, e, se não acontecerem, é preciso saber quais são os canais para denunciar. A partir dessa regulamentação, conseguimos garantir verba pública para os serviços, para que os protocolos de parto, nascimento e assistência nas maternidades contemplem essas situações com o cuidado necessário.
Por exemplo, é possível prever quartos isolados para quem teve alguma perda. Não está escrito exatamente isso na política, mas ela abre essa possibilidade. Podemos começar a discutir: teremos verba para isso? São reflexões que a política permite fazer, conforme for sendo implementada.
Também poderemos cobrar que os profissionais de saúde e gestores sejam formados e capacitados para lidar com essas situações. Mas é importante dizer que essa política não se aplica só ao sistema público, mas também ao privado. O sistema, seja público ou privado, tem a responsabilidade de oferecer acompanhamento, inclusive psicológico, para as famílias.
Morte Sem Tabu: Qual é o papel da informação e do acolhimento diante da possibilidade de interrupção da gestação?
Heloísa: É muito importante que as mulheres que passam por isso possam ter informação e um atendimento que não julgue e não critique. Para assim, essa pessoa possa fazer a escolha que precisa fazer, que dá conta e que represente o melhor para ela e sua família.
Ninguém realiza a interrupção de uma gestação em paz. Ninguém toma uma decisão dessa e fica em paz. As pessoas sempre vão ficar com o “e se” e o “será que”. Temos que oferecer informação segura, com base em evidências, desprovida de julgamento, de qualquer caráter religioso ou espiritual, e que seja de fácil acesso. Que a gente facilite o acesso dessas pessoas aos serviços que vão acolhê-las, seja o serviço que vai promover a interrupção, o serviço que vai seguir o pré-natal de alto risco ou o serviço de cuidado paliativo.
E que esses serviços possam acolher essa pessoa e família, e com elas montar planos de cuidado. Para que possam estabelecer o que precisam nesse processo, que vai do diagnóstico até o momento do nascimento do bebê, passando ou não pela interrupção, e depois do nascimento, o que desejam viver, precisam viver e podem viver.
Se a gente não faz isso na hora em que o bebê nasce, na maternidade, não temos como depois voltar atrás. Ao sair da maternidade, o bebê vai para os procedimentos funerários, como enterro ou cremação. Se isso não for pensado na hora do nascimento, não tem mais como voltar atrás. Saiu da maternidade, o bebê vai para os procedimentos funerários: enterro, cremação. É essencial que esse cuidado seja feito com antecedência.
Morte Sem Tabu: Qual o impacto da falta de acolhimento e acesso à informação sobre a escolha pela interrupção da gestação?
Heloisa Salgado: Quando a gente oferece uma informação baseada em evidências, sem julgamento e de forma acolhedora, a gente se coloca como facilitador para que a família possa entender o que é melhor para ela a partir do acesso a todas as possibilidades.
Com isso, ela consegue fazer uma escolha mais consciente, mais respeitosa com sua própria história, e que lá na frente vai ajudá-la a lidar com o luto de uma forma mais adequada.
O que a gente muitas vezes não percebe é como estamos marcando essas mulheres, essas pessoas com útero, gestantes, puérperas, seus parceiros, suas parceiras, suas famílias. A vivência de uma situação como essa, quando não é bem acolhida, deixa marcas muito profundas. E essas marcas impactam a vida inteira.
Essas famílias só deveriam ter que lidar com o fato de que o filho morreu ou vai morrer. Seja porque o coração parou naturalmente, seja porque fizeram uma escolha difícil diante de uma malformação gravíssima. Era só isso que elas deveriam ter que enfrentar: o fato de que não vão ter esse filho nos braços, não vão criá-lo. Mas o que acontece é que, além dessa dor imensa, elas têm que lidar com todo o resto: julgamento, negligência, burocracia, violências. E isso é muito, muito cruel”.
Morte Sem Tabu: O que nós podemos fazer para apoiar uma pessoa que esteja passando pelo luto perinatal?
Heloisa Salgado: Quem nunca viveu essa experiência, ou até mesmo quem já passou por algo parecido, não sabe exatamente o que a pessoa está sentindo naquele momento agudo do luto. Claro que, quando a gente já viveu, tem mais condições de compreender, mas o luto é algo muito individual.
O mais importante é estar disponível para apoiar essa família e lembrar que uma das pessoas, geralmente a mãe, está não só enlutada, mas também no puerpério, em recuperação. É um corpo mais vulnerável, com limitações físicas. Então, muitas vezes, o que essa pessoa precisa é de ajuda concreta: alguém que lave roupa, vá ao banco, cuide da criança mais velha, ajude a arrumar a casa.
Quando alguém está enlutado, esse tipo de ajuda com o dia a dia é muito bem-vinda. Estar presente, exercitar a escuta, validar o sofrimento, tudo isso conta muito. Estar ao lado, simplesmente para ouvir, sem julgar, sem tentar dar um conselho para “resolver” a dor.
A maioria das falas tenta acabar ou aliviar o sofrimento, mas a verdade é que essas falas não aliviam. Vale muito mais ouvir, estar por perto e fazer algo prático pela pessoa. Porque cada luto precisa ser vivido. Ele não deve ser interrompido. E é fundamental que essa pessoa tenha uma rede que caminhe junto, segurando na mão dela durante esse processo.